Capítulo 4

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— Princesa Bela, agradeço pela sua visita. É uma honra que venha entregar pessoalmente a um mero súdito notícias tão felizes. — Digo, fazendo uma reverência exagerada. — Mas, creio que já passamos do toque de recolher, então a princesa deveria estar em seus aposentos reais. — Aponto em direção à porta, assim que me ergo. Ela acena com a cabeça e se afasta lentamente, olhando, por vezes, para mim, antes de partir. Por fim, se volta e com uma expressão distante, pergunta:

— Você me odeia agora? É assim que será conosco?

Mais uma vez sinto o golpe no estômago que me rouba o fôlego. Se eu a odeio? Enquanto quase morria, meus delírios febris me mostravam o tempo inteiro apenas ela. Apenas Bela. Seus dedos delicados me massageavam os pés e crianças com seus traços riam e corriam pela casa. Bela em meus braços, Bela em meus lábios, Bela em tudo que seria, queria, desejava e amava. Seus doces olhos, seu sorriso, a mecha teimosa que teimava a escapar do laço dos cabelos castanhos daquela camponesa brilhante, curiosa e sempre ávida por mais.

As miragens de paz acabavam com uma imagem do maldito. Em meus sonhos, não era um homem e, sim, um animal peludo e horripilante. Urrava e espumava, com bocarra e garras de pantera. Exatamente o monstro que é em seu coração. E não havia escapatória. A casa desaparecera por completo. Estávamos eu e Bela, sós, no frio e na escuridão e seus olhos animalescos como chamas nos seguiam, onde quer que fossemos. Um espelho mágico em suas mãos revelava nossa localização. Um pesadelo terrível. Recobrava a consciência com um suor frio e a consciência de que a miragem era a realidade mais pura, mais brutal, aquela que nos recusamos a reconhecer. Eu perdera Bela. Perdera meu amor, um pedaço da minha alma, o que havia de mais puro e belo neste mundo.

Não, não posso odiar Bela. Jamais.

Exceto que Bela não existe mais. Foi engolida pela maldição de suas escolhas, escolhas que jamais serei capaz de entender.

Talvez seja isso o que a atraiu ao príncipe, afinal. Talvez ele seja capaz de entender essa inquietação, o desconforto de alguém que se viu crescendo demais para o aquário onde habita. Talvez tenha também dentro de si esse fogo consumidor, essa ânsia por coisas intangíveis e inalcançáveis, o descontentamento pungente que estica e torce e corrompe as mais perfeitas das almas na busca desenfreada pela felicidade.

Afinal, tudo que ela mais queria era alguém para a entender.

— Bela... — Sussurro, tentando me manter sob controle. A ironia é que minha vontade mais primal, mais primitiva, seja de resgatá-la e possuí-la e ignorar qualquer razão ou consequência. E não era esse meu instinto ilógico que Bela positivamente desprezava?

— Sim? — Ela estremece, os olhos brilhantes embevecidos, esperançosos.

— Volte para o seu príncipe. — Respondo com firmeza e num tom que não deixa espaço para réplicas. — É com ele que deve buscar contentamento e consolo.

Sou eu o animal neste instante. Aquele que despedaça seu coração em pedaços com minhas garras. Ou assim é como me sinto. Mas o único que gostaria de destroçar é aquele maldito, o que lhe causa dor, o que lhe prometeu mundos, mas condenou-a à masmorra, ao isolamento da realeza, sem nenhuma compensação.

Ou estou apenas me iludindo?

Ela assente lentamente, limpa as lágrimas que caem de seus olhos, ajeita o capuz negro sobre a cabeça e me lança uma última olhada antes de destrancar ruidosamente a porta.

— Será que um dia nos veremos novamente? — Pergunta, sem olhar para mim, antes de partir, e percebo que isso é, de todas as formas, para nós dois, um definitivo adeus.

— Mas, é claro... — Respondo lentamente, lançando-lhe o sorriso torto que sempre a fez brilhar no passado. — Sempre a verei quando fizerem aparições públicas, afinal, você ainda é minha alteza e eu seu súdito.

Ela sorri, mais conformada, e aperta minha mão uma última vez.

— Gaston... só quero que saiba de uma coisa. — Balbucia docemente, com os grandes olhos castanhos mais doces do que nunca. — Não há ninguém igual a você. Nem melhor que você.

E, com essas palavras, beija meu rosto, corre em direção ao seu cavalo e parte. Observo-a galopando para longe e permaneço no frio e no silêncio por um longo tempo, antes de cerrar a porta para o meu passado.

E você sempre será a garota que deixei escapar.

Aquela que nunca deixarei de amar.

Minha alteza real.

A esposa de uma outra fera.

* * * 

FIM

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[764 palavras]

[TOTAL: 3484 palavras]

Obrigada por terem acompanhado a história! <3 

Espero que o pessoal que ama A Bela e a Fera tenha me perdoado pela liberdade :)) (também amo, por sinal, mas foi muito divertido reinterpretar o conto).

Até a próxima! Não esqueçam de ler e comentar A PRINCESA ERRADA e Sons de Ferrugem & Ecos de Borboleta, para quem quiser ler um livro meu :)))

A Outra FeraWhere stories live. Discover now