TRÊS

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Só quando adentrou a porta da sala da pequena cabana onde a avó vivia, Lilian pôde respirar. Soltou o ar dos pulmões e inspirou outra vez. Os olhos fechados, as mãos gélidas, as costas contra a porta e o medo ainda esmagando seu coração, as íris douradas que não saíam de sua mente. August e a Fera, os mesmos olhos, o que mais poderiam ter em comum?
Ela sabia. Sim, Lilian sabia bem o que August tinha em comum com o Lobo, pois era o mesmo que ela. Os dois há muito compartilhavam esse passado. Um acontecimento que, ao que parecia, ainda pesava mais para ela do que para ele.

                               ***

Naquela noite, Lilian deitou-se ainda mais cedo do que costumava. Recusou todas as tentativas da avó de fazê-la comer algo e ignorou todas as perguntas insistentes de Claire.
“O que você tem?"
“O que aconteceu?"
“Está passando mal, Lili?”
“Você parece mais pálida, Lili. Tem certeza que está bem?”
“Por que não quer comer? Vovó fez bolo de cenoura pra sobremesa, seu favorito.”
“Está assim por causa do que eu perguntei no caminho?"
“Lili, você está brava comigo?”
Entre muitas e muitas outras indagações. A cada vez que Claire abria a boca, Lilian suspirava exasperada por saber que viria mais uma pergunta para a qual ela não tinha resposta ou não podia responder.
Como dizer a irmã que o problema era o lobo? Que ele a perseguia quando estava acordada e a impedia de dormir todas as noites se fazendo presente em seus sonhos? Como dizer que o temia com todas as fibras de seu ser mesmo que a cabeça dele estivesse há anos pendurada na sala do pai de August como um troféu? Como se explica o inexplicável?
E será mesmo que ela o viu essa noite? Não seria a primeira vez que seus olhos e sua mente lhe enganariam a fazendo ver algo onde nunca esteve, ou a fazendo ter lembranças confusas de lugares e coisas que nunca foi ou fez. A verdade é que Lilian sentia como se sua mente fosse um labirinto escuro e confuso, cheio de borrões e fantasmas e quanto mais ela tentava encontrar uma saída, mais parecia se perder. Talvez nunca encontrasse uma saída, mas, quem sabe, pudesse chegar ao centro do labirinto e descobrir o que estava escondido no mais profundo da sua mente, o motivo para ser como era e sentir o que sentia.
       
— Lili? — Claire chamou do beliche de baixo. Lilian pensou em ignorá-la até que pensasse que já estava dormindo. Mas a irmã conhecia esse seu truque. — Eu sei que está me ouvindo, Lili. — a garotinha suspirou profundamente, estava tensa, dava para perceber na intensidade de sua respiração. Ela iria perguntar. Ela sempre perguntava, mas Lilian torcia para que dessa vez os deuses a ouvisse e calassem sua irmã. Por favor, Claire, não pergunte. Por favor.
Não precisa responder se não quiser.— prosseguiu — Mas eu só queria entender, sabe, porque você é diferente. Como diferente? Por fora você parece...normal.
— É porque o problema está dentro. — os olhos de Lilian fitavam o teto como se fosse uma tela onde ela pintava as memórias em sua mente e as observava, como se não fizesse parte delas. A floresta, duas crianças. August e ela. A neve fofa sob seus pés, o lago congelado e claro como se fosse vidro. Não devia ter saído de casa naquele dia, a mãe havia lhe dito que não era uma boa época para crianças brincarem na floresta, mas August disse que era seguro, ele a protegeria. “É mais fácil eu proteger você.” a jovem Lili brincou, empurrando-o para o lado e se colocando a sua frente. Liderando a aventura...
— É como...como algo sentido? — a voz de Claire interrompeu seu devaneio, suave como o tilintar de sinos pequeninos.
— Isso. Algo sentido.
— E o que é que você sente que te faz diferente, Lili?
Lilian colocou a cabeça para fora da cama, deitada de bruço pôde encarar a face da irmã. Os traços tão semelhantes aos da mãe, os cabelos como raios do sol e os olhos azuis como o céu no verão. Todos estavam errado, Claire que era a mais bela. Tanto por fora quanto por dentro.
— Tem certeza que quer saber? — indagou. A outra balançou a cabeça, afirmando, um pequeno sorriso tomando espaço em seus lábios rosados.
— É como algo incontrolável. — começou. — Uma coisa muito ruim que insiste em não me deixar em paz e as vezes me faz querer fazer coisas ruins...
— Que coisas ruins?
— Coisas que não se deve fazer. Coisas terrivelmente ruins.
— E você faz essas coisas? — Claire puxou a coberta mais para perto. Ela temia a resposta que a irmã poderia dar, seus olhos estavam fixos nos de Lilian.
— Não, claro que não. Eu não sou uma pessoa ruim, sou?
— Acho que não.
— Acha? — O rosto de Lilian se converteu em uma expressão séria, dura. Mas logo em seguida, um sorriso tomou seus lábios e ela sentou-se antes de saltar para a cama de Claire para atacá-la com muita cosquinha até que não aguentasse mais rir. Enquanto ela se contorcia em meio aos risos, Lilian perguntou outra vez : — Não sou uma pessoa má, sou?
— Não, não, você não é. É a melhor de todo o Reino. Nem a princesa Evangeline era tão boa quanto você. — Mas não foram as palavras de Claire que fizeram Lilian acreditar nisso e sim a doçura com que a olhava, a admiração em seus olhinhos, o amor. Se alguém tão puro a amava, ela não podia ser má, certo? E ela não era. Não importa o que tenha feito depois, Lilian Lamartine era tudo menos uma pessoa má.

— Agora para com isso. — Claire pediu, ainda gargalhando e foi atendida.
De volta a sua cama, Lilian desejou que sua irmã tivesse razão.
— Posso perguntar mais uma coisa, Lili?
— Uhum.
— Como é essa coisa que você sente?
— Um lobo.
— Que?
— É como ter um lobo crescendo dentro de mim. Uma fera cruel que me consome, mas eu a tranco em um porão e a controlo só que uma hora, ela vai ficar muito faminta e vai sair.
— E o que vai acontecer quando ela sair? — Claire engoliu em seco, mas uma vez temendo o que podia ouvir a seguir.
— Eu não sei. Acho que finalmente farei as tais coisas ruins.
— Talvez você consiga matar esse lobo, Lili. Ou o August pode matar para você, como o pai dele fez com o primeiro.
— Por que você acha que August faria isso? — Lilian voltou a colocar a cabeça para fora da cama, para olhar a irmã.
— Porque o pai dele já matou um lobo muito mal uma vez. Mamãe me contou.
— Mas o filho do Caçador não é o Caçador, Claire. E esse lobo está dentro de mim, então para matá-lo, eu teria que...
— Você teria que morrer.
— Você quer que eu morra, Claire?
— Não. — Só de pensar em um mundo sem a irmã, a garota sentiu seu coração doer. Não, ela definitivamente não queria que Lili morresse.
— Então acho melhor você parar com as perguntas por hoje ou eu vou morrer, mas é de sono, tudo bem? — bocejou, mesmo sem vontade.
— Tudo bem. — Claire assentiu, antes de desejar que a irmã tivesse bons sonhos e fechar os olhos. Minutos depois, ela dormia como um bebê, já Lilian ainda encarava o teto. Os olhos arregalados e atentos, as pupilas dilatadas, o coração batendo forte, enquanto um duplo brilho dourado surgia diante de si. 

(1251 Palavras)

SANGUE & NEVE (+16)Where stories live. Discover now