CINCO

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Mal pregara o olho e já estava desperta outra vez. Parecia que não havia dormido mais que cinco minutos. E o problema nem era falta de sono, pelo contrário, simplesmente não conseguia dormir porque quando fechava os olhos ele estava lá. As lembranças do inverno do seu nono aniversário quando tudo começou, embora, certas coisas houvessem começado bem antes. Talvez até mesmo antes de seu nascimento. Mas foi aquele incidente em especial que mudou algo dentro dela para sempre.
          Sentada na cama, com as costas junto a parede fria, Lilian tentava se acalmar e fazer sua pulsação manter um ritmo normal. Suor frio escorria por sua testa. Era como se em parte ainda estivesse vivendo o pesadelo. Ainda estivesse naquele bosque anos atrás quando o lobo a atacou.
Lembrava perfeitamente do momento em que ele saltou sobre ela e a fez cair no chão, o hálito fétido e quente do animal junto a sua pele, os olhos vermelhos que encaravam-na. As presas expostas. As garras afiadas. Ela poderia ter sido estraçalhada ali mesmo, como uma pequena lebre, ou esmagada como um inseto. Mas não foi. Não foi graças ao Filho do Caçador que tinha mais coragem dentro de si do que se podia imaginar. Valentia suficiente para chamar a atenção da Fera para si, mesmo sabendo o quão perigoso para ele seria aquilo.

"Corre, Lili, corre!" gritava para a garota ainda no chão, o encarando, perplexa, apavorada, paralisada. "Corre, Lili!!"
O lobo estava indo na direção de August, que corria com todas as suas forças para manter o máximo de distância possível da fera, enquanto gritava para Lilian fazer o mesmo só que na direção oposta. Levantar. Correr. Pedir ajuda no povoado. Era isso o que ela precisava fazer. Só que nem sequer conseguia levantar. Era como se, em parte, nem estivesse mais lá. Sua mente vagava, distante, vislumbrando um quadro trágico em que August estava caído no chão, ensanguentado, enquanto a fera estraçalhava-o com suas garras e presas, rosnados ferozes reverberando por entre as árvores em harmonia com os gritos do garoto agonizando até...
"Corre, Lili! Lili!!!! Corre!!!"
O desespero nos gritos de August trouxeram-na de volta à realidade. Ela precisava correr, precisava salvá-lo.
Levantou-se e correu! Correu com tudo, gritando que traria ajuda. Mas, atrás de si, a fera também corria, só que não mais atrás de August.
           E um lobo gigante é muito mais rápido que uma garotinha de nove anos, assim não demorou muito para alcançá-la e derrubá-la no chão outra vez. Agora, a cabeça de Lilian não foi de encontro a neve como antes, bateu em uma pedra. Tudo ficou turvo. Mas ela ainda pôde sentir os dentes perfurarem a carne macia de seu braço e também pôde ouvir o grito choroso de August. E isso é tudo de que se lembrava, até acordar em casa, deitada em sua cama com a mãe ao seu lado com preocupação clara no rosto e o pai acariciando seu cabelo. Claire no colo dele, olhando para todos com uma expressão tão confusa quanto só uma criança de quatro anos é capaz de fazer.

August já estava em casa, com seu pai, um cobertor quente e a cabeça de um lobo enfeitando a parede!
Dias depois, a avó de Lilian lhe deu uma capa vermelha como a que usava agora a cada vez que saia de casa. "É para protegê-la. Lobos odeiam vermelho. Jamais vão se aproximar de você enquanto usar isso." dissera a senhora com doçura. Na época, a garota acreditou, mesmo que lá no fundo soubesse que era só mais uma daquelas mentiras inocentes que os adultos contam para tranquilizar as crianças. De um jeito ou de outro, hoje em dia já não acreditava mais pois, mesmo usando a capa, quando abria os olhos tudo o que via era aquele maldito par de íris ora vermelhas, ora douradas, citilando na escuridão do quarto. E não era só isso. Podia sentir o cheiro de pelo de cachorro molhado, o aroma fétido do hálito do lobo, o calor da respiração dele contra a sua pele. Ele estava lá, no quarto, com ela. Estava. E iria matá-la.

Lilian tremia. Estava gélida, suando, apavorada. A adrenalina percorrendo cada célula de seu corpo. O coração batendo tão rápido que parecia doer. A respiração tão acelerada quanto. Apertava as mãos com toda força, repetindo para si mesma, mentalmente, que aquilo não era real. Ele não podia estar ali. Estava morto. Morto! Morto! Morto!
Repetia e repetia.
Acariciando a cicatriz esbranquiçada deixada em seu braço esquerdo, que geralmente ficava escondida pela manga comprida dos vestidos.
      Aquilo tudo parecia tão errado e tão real. Ela o sentia se aproximar, via seus olhos ferozes, ouvia os grunhidos e rosnados, e, acima de tudo, Lilian sentia. Sentia a presença do lobo ali. Sentia o medo a consumir.  Lentamente, ele caminhava em sua direção, como se soubesse que ela não sairia do lugar. Que outra vez ficaria congelada pelo pavor.
      E havia algo mais de diferente ali. Algo no ar e em cada canto a sua volta. Lilian sentia o frio na sua pele, a umidade do ar, a brisa invernal passando por ela, causando arrepios. Era como se não estivesse mais no quarto na casa da avó, onde dormia em todas as vezes que passava a noite lá desde quando era criança. Não estava mais na beliche de cima. E não era a respiração de Claire que ouvia. Ouvia os sussurros ruidosos do vento e os grunhidos ferozes. O lobo estava sobre ela, as grandes patas ao lado de seu corpo e os olhos dele eram mesmo vermelhos. Tão vermelhos quanto ela se lembrava. A respiração da fera era como uma lufada suave de ar quente contra seu rosto. Lilian se sentia trêmula, as lágrimas pinicando nos olhos, o suor escorrendo na testa, o coração disparado no peito, o grito sufocado na garganta. Precisava gritar. Precisava sair dali. Alguém tinha que ajudá-la!
— August! August! — chamou. — August!

      Nem mesmo sabia que August não a ouviria. A única pessoa capaz de ouvir suas súplicas era Claire, no beliche de baixo.
Mas Lilian não sabia disso. Não era o quarto que via. Em sua mente, se encontrava em um lugar totalmente diferente, presa em um pesadelo terrível do qual não conseguia se libertar. Então, continuou a gritar por August, enquanto as lágrimas escorriam por seu rosto e as garras do animal perfuravam sua carne com violência.
— A-August! Por...por favor, August, não me deixa aqui! — implorava, meio aos soluços chorosos e gemidos de dor. August estava indo embora e a deixando sozinha na floresta escura e fria com o lobo mal.
— August...— suplicou uma última vez antes das garras pontiagudas do lobo irem de encontro ao seu pescoço, atingindo uma artéria e fazendo o sangue jorrar. Enquanto sufocava em seu próprio sangue e lágrimas, Lilian acordou de seu devaneio.
           Com a respiração ainda pesada e cada centímetro de seu corpo tremendo e sentindo frio, ela percebeu que ainda havia ar em seus pulmões. Deitada na cama, com os olhos arregalados, fitando o nada na escuridão. Não havia lobo algum. Não estava no bosque. Estava viva!
— Não aconteceu. Nada aconteceu. Não aconteceu... — sussurrava para si mesma, sentindo um misto confuso de alívio e pavor. Alívio por tudo não ter passado de ilusão e pavor, pelo mesmo motivo.
— O que há de errado comigo? — passou a mão na testa para limpar o suor. Lágrimas ainda escorriam de seus olhos e ela tentava conter os soluços.
— Lili?— uma voz sonolenta a chamou. Na cama de baixo, Claire havia, finalmente, despertado.



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SANGUE & NEVE (+16)Onde histórias criam vida. Descubra agora