10. O prelúdio do fim

158 21 0
                                    

Pela primeira vez, Marisa realmente enxergou Marco e compreendeu o significado da sombra que em certos momentos flagrava no rosto dele. Aquela mesma sombra que lhe toldava o olhar agora.

— Marco, eu não imaginava...

Marisa apertou a mão dele. Marco remexeu-se desconfortavelmente e mirou o teto. Sua voz soou impessoal, como se contasse a história de outro homem.

— Lorena cresceu no interior e veio para São Paulo cursar letras. Entrou no meu grupo de estudo e, para mim, foi amor à primeira vista. Ficamos amigos, mas reprimi meus sentimentos. Na época eu namorava e Lorena tinha um noivo no interior chamado Rafael. Estavam juntos desde a adolescência e ele era herdeiro de uma fortuna em fazendas. Lorena vinha de uma família rica, e os pais a pressionavam para casar com ele para unir as fortunas. Só que Rafael era extremamente ciumento. Para fugir à pressão dele e da família, Lorena se mudou para São Paulo. No ano seguinte ela cedeu e o casamento foi marcado. Quando finalmente me declarei, Lorena teve uma reação brutal.

Perdido em lembranças, Marco relanceou o céu que escurecia. De repente caiu em si e consultou o relógio de cabeceira.

— Sete e meia. Precisamos nos vestir. Eliana pediu que a gente jantasse com ela e o marido para diluir o clima. Combinamos de nos encontrar às oito no lobby. — Marco imprimiu um beijo nos lábios de Marisa. — Ainda dá tempo de tomar um banho rápido.

Ela segurou-lhe o braço.

— Promete que depois você conta o resto?

— Prometo.

Chegaram ao átrio com dez minutos de atraso. Eliana surgiu em um longo branco, detendo-se no centro da rosa-dos-ventos tal uma aparição. Seu sorriso traía ansiedade.

Marisa avaliou sub-repticiamente Marco — o perfil imponente de nariz reto e olhos emoldurados por cílios espessos, a camisa branca de mangas curtas revelando os braços fortes — e questionou se Eliana não sentiria atração por ele. Aliviada por estar apresentável diante dela, Marisa ajeitou as alças de seu minivestido azul num gesto inconsciente, felicitando-se por suas sandálias de salto alto: ganhar estatura e ouvir o som dos próprios passos a deixava mais autoconfiante.

Eliana fez sinal para um homem que vinha na direção deles.

— Robert esqueceu o celular carregando na cabine e foi buscá-lo — esclareceu.

— Nós deixamos os nossos no cofre. Decidimos viver a realidade cara a cara sem a interferência de uma tela — disse Marco.

— Eu também. Meu marido jurou que vai largar o celular a partir de amanhã. Hoje ele está esperando a ligação de um paciente.

Robert aproximou-se, cumprimentando-os com um aceno quando Eliana fez as apresentações. Mostrava-se impecável como a mulher: camisa polo azul-marinho de grife, cabelos curtos com uma leve camada de gel e o rosto simétrico recendendo a loção de boa qualidade.

Aquele homem circunspecto nem de longe parecia o bêbado impertinente que havia derrubado Marisa na piscina. Ela o encarou boquiaberta enquanto os olhos azuis dele se arregalaram por uma fração de segundo antes de se desviarem. Ainda digerindo sua descoberta, Marisa teve pena de Eliana — não era de surpreender que quisesse se divorciar de um traste daqueles. Mal podia esperar para contar tudo a Marco quando estivessem a sós.

Ao cruzarem o átrio em direção ao restaurante, Marisa ouviu chamarem seu nome e deparou com Zoe e seu novo amigo Jean-Philippe Arnaud, o percussionista da banda Subversion que havia tocado no Deque 11. Passeavam de mãos dadas, ela ainda com o famigerado vestido lilás e ele com a túnica de batique usada no show. Contente de ver a amiga, Marisa convidou-os para jantar e o grupo se encaminhou ao restaurante.

O Emerald Cascade dividia-se em dois níveis interligados por uma escadaria dupla enfeitada por uma cachoeira. O mezanino ficava no Deque 4 e o opulento salão principal expandia-se pelo Deque 3 com suas colunas brancas, luminárias art nouveau e um vitral ao fundo. As mesas próximas às janelas já estavam ocupadas, e o grupo se instalou em uma mesa central com elegantes cadeiras verdes.

Marisa apressou-se em sentar entre Eliana e Marco enquanto Zoe e Jean-Philippe se acomodaram à sua frente. Examinando a carta de vinhos, Zoe recomendou o cinsault que havia tomado com Marisa. Seguiu-se um breve debate. Marco preferia um beaujolais. Jean-Philippe, um pinot noir. Robert propôs um carménère.

Zoe fitou os três.

— Já entendi. Vocês acham que vinho rosado é coisa de mulher. — Ela deu uma piscadela para Marisa.

— Vocês não sabem o que estão perdendo — disse Marisa. — Esse vinho...

— Eu vou pedir uma água mineral — Eliana atalhou, pousando a mão sobre a do marido. — Talvez Robert queira água também, não é, meu amor?

Por mais que tentasse, Marisa não superava a antipatia por Eliana. Havia uma certo cálculo nas maneiras dela que lhe dava nos nervos. Talvez, no fim das contas, Eliana e Robert se merecessem. Marisa resolveu ignorá-la. Inclinou-se para a frente, e a alça fina de seu vestido deslizou pela curva do ombro.

— Vocês precisam zelar pela sua hombridade, certo? Só que o ideal masculino não passa de uma fabricação cultural e nem Freud conseguiu definir o que é masculinidade. Vamos nos ater aos fatos. — O trejeito lânguido de Marisa fez a alça do vestido descer mais um pouco. — Esse cinsault é delicioso. Tem lágrimas grossas, estrutura e maciez. O paladar é doce mas refrescante. Ele envolve o olfato com o aroma de morangos recém-colhidos e aquece o corpo com o sol da Provença. Depois o cinsault se espalha na língua como veludo e se aprofunda com um traço de amora, framboesa e cereja. O sabor fica mais intenso e se prolonga, rola e brinca dentro da boca como uma carícia...

Marisa ronronou a última frase, arrematando-a com um sorriso sinuoso. Fez-se um silêncio com várias conotações.

— E então? — Zoe perguntou aos homens.

— Vamos provar o cinsault. — Robert adiantou-se, os olhos fixos em Marisa.

— Perfeito — apoiou Jean-Philippe.

Marco concordou secamente. Descansou a mão no ombro de Marisa e aprumou a alça do vestido dela.


_______________________________________

Pois então... Você esperava ver uma certa pessoa no lobby? ;) Eu adoraria saber, e se você comentar, só não mencione o nome da pessoa!

Como sempre, se você curtiu este capítulo e quiser me dar uma força, por favor vote com um clique na estrelinha na parte superior direita da página. Como sempre, serei eternamente grata a você.

Ah, daqui pra frente a coisa vai embolar legal  :)

VERMELHO 2: Jogo de Espelhos [#Wattys2017]Onde histórias criam vida. Descubra agora