35. Radiografia de uma máscara

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Caóticos cubos mágicos, quebra-cabeças incompletos, ela mesma uma peça de um arranjo por finalizar. Cada vez mais confusa, Marisa viu — ou achou que viu — o semblante de Eliana demudar-se uma vez mais, exsudando uma alegria longínqua de matizes tão descorados quanto as lembranças que evocava.

— A minha história começa no dia em que conheci Robert — disse ela. — Nunca esqueço. Segundos antes de eu esbarrar com ele numa trilha na praia, senti um tremor bem aqui no peito. Foi mágico, parecia que nos conhecíamos há anos. Em três meses casamos. Eu achei que tinha ganhado o prêmio máximo na loteria. Ele era perfeito. Para mim, Robert era como um deus. Só mais tarde percebi meu engano.

— Ninguém é perfeito, Eliana — Marisa replicou rigidamente.

No entanto, essa era a imagem que Robert lhe conjurava: um deus adornado de safiras e fios de ouro reinando no topo do Olimpo. Perfeito.

— Ninguém é perfeito — Eliana repetiu. — Racionalmente eu sabia disso. Mas não estava sendo racional. Estava apaixonada. Tinha encontrado um homem sensível e inteligente que me tratava como rainha. Ele sempre me elogiava e atendia aos meus desejos antes mesmo que eu os externasse. Era minha alma gêmea. Nunca imaginei que um dia não o reconheceria mais.

— Os relacionamentos mudam e as pessoas também. — Marisa disse, pensando em Marco.

— Robert não é uma pessoa qualquer. Sofreu um trauma profundo com a separação dos pais. Era o filho único de um lar estável que desmoronou do dia para a noite. De repente, Robert passou a ter duas casas conforme o cronograma da guarda compartilhada. A mãe resolveu que queria aproveitar a vida e mal lhe dava atenção. O pai não demorou a casar de novo e teve outro filho com uma mulher que secretamente competia com Robert e o detestava. Ele, outrora o centro do núcleo familiar, passou a ser um mero coadjuvante no drama dos pais. Tinha só doze anos. Nem jovem demais para esquecer nem maduro o suficiente para suportar o baque.

No início do casamento Robert mencionara que havia feito terapia após o divórcio dos pais, sendo diagnosticado com narcisismo. Com ajuda do terapeuta, aprendera a manter o quadro sob controle. Eliana julgou que fosse um caso de egocentrismo desencadeado pelo trauma. Reconheceu o quanto Robert combatia o diagnóstico, empenhando-se em ajudar os outros. E isso a fez amá-lo ainda mais.

No primeiro ano do relacionamento Robert foi um parceiro exemplar, brindando-a com gestos que a faziam sentir-se a mulher mais especial do mundo. Numa ocasião, perdera a hora de almoço para atravessar a cidade e consolar Eliana quando seu melhor amigo morreu. Robert se mostrava sempre solícito e fazia de tudo para estar a seu lado. O idílio, entretanto, foi-se dissipando.

— Robert se distanciou de mim — prosseguiu Eliana. — A clientela em sua nova clínica aumentou e ele se envolveu em mais programas assistenciais. Queixei-me que nunca estava em casa. A resposta de Robert foi o silêncio. Eu me senti culpada pelo meu egoísmo e pedi desculpas.

Aparentemente ficou tudo bem, mas ele nunca mais foi o mesmo. Eliana não saberia precisar quando a mudança ocorreu. Foi gradual, quase invisível. Ao dar por si, as mensagens apaixonadas que recebia todos os dias no celular haviam se reduzido a comunicados práticos. Por outro lado, bastava ela manifestar o menor sinal de insatisfação para Robert surpreendê-la com um presente ou uma viagem romântica no fim de semana.

O sucesso da clínica de Robert e o projeto de mudar para uma casa maior justificavam as frequentes ausências dele. Eliana engolia sua solidão para não desencorajá-lo enquanto ele fazia planos para construir uma mansão que se tornaria palco de infindáveis jantares e festas. Era exaustivo acompanhar o ritmo de Robert, e Eliana buscava constantemente novas formas de entretê-lo. Vivia em pânico de que Robert se cansasse dela e deixasse de amá-la.

VERMELHO 2: Jogo de Espelhos [#Wattys2017]Where stories live. Discover now