Peidanfa - Parte I

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Segue abaixo a carta que Júlio Doípe deixou em sua antiga moradia:

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Segue abaixo a carta que Júlio Doípe deixou em sua antiga moradia:

Carta para a prosperidade - Meu segredo revelado - Palmital-PR - 01/02/2016

Um peido. Foi isso que mudou a minha vida.

Agora eu posso dizer, não me envergonho mais.

Vai ser dolorido contar isso, lembrar todo aquele pesadelo. O que pesa é a recordação de Ademar. Não pelo que ele foi ou representou, isso não importa, mas sim pela tragédia em si.

Ademar estudava comigo, era um valentão. Forte, alto e extrovertido. Não existia espaço, atenção, ou mesmo vitórias que lhe fossem suficientes. O cara engoliria o mundo se fosse possível. Sempre rindo, fazendo piadas, danças, joguetes, talvez fosse uma pessoa hiperativa, não sei, agora não se pode mais diagnosticar. Acho que porque eu era exatamente o oposto disso ele nutria por mim alguma atração, movida por ódio e preconceito. São suposições.

Eu não queria ser notado. Ficava na fila do meio, em um canto da sala. Minha intenção era que nem mesmo o professor me visse. Sou tímido, mais isso nunca me frustrou, gostava de ficar ali, na minha. Queria apenas a atenção básica para ser socialmente aceito. Óbvio que não tinha nem esse mínimo, não ali no ambiente escolar.

O que posso falar de bom sobre o Ademar é que ele tinha uma veia cômica. Não que usasse isso para deixar as pessoas felizes, seu humor era sombrio, momentaneamente podia fazer rir, mas na sequencia, pelo menos em mim, o que vinha era um mal estar.

Todos os menos influentes na nossa sala tinham apelidos, sendo a maioria nascidos de zombarias do Ademar. Tinha o Eita, um menino que morava na zona rural e vivia explanando: eita! Quando ele surgia na sala, ou tinha de ir ao quadro, ou até mesmo quando estava respondendo alguma questão, um coro puxado por Ademar soava: eita! Eita! Era engraçado, pois o menino ficava avexado, e se perdia todo. Tinha a Dentinho, uma menina que eu achava linda, mas possuía um dente torto que se destacava, eu considerava um charme, mas bastou uma vez o Ademar falar para uma garota que pedia uma bala. "Pede pra Dentinho." Que o apelido pegou. Tinha o Fungo, um menino que só sentava no canto, vivia com sono e tinha uma coloração esverdeada na pele, parecia que estava sempre mal de saúde, na verdade estava mesmo, ele acabou saindo do colégio, tinha leucemia e foi se tratar em outra cidade. A menina que sentava ao meu lado, minha única amiga, era chamada de Cafuza. Tinha a pele amarronzada, olhos de mestiça, era gordinha e tinha pelos bem aparentes no buço. Não tenho como negar, a beleza não era o forte dela. Eu era chamado de Depressão. Não me considerava deprimido, mas depois do apelido parece que comecei a ser. Havia outros como Gordo Troncho, Power Ranger, Raimunda, Paliteiro, Boca de Bunda, Sovaco de Galinha, Pirulito Louco, não me lembro de todos.

No começo quando conheci Ademar cheguei a rir de algumas brincadeiras. Achava que me ajudaria a ser aceito. Cheguei a rir até mesmo do meu apelido, pois fazia sentido, tinha sua graça. Mas o lance é que aquilo quando começava não cessava, era repetido até que impregnasse na sua alma. Com o tempo o Ademar se tornou o rei da turma. Até os professores aceitaram aquilo. "Esse garoto, temos que reconhecer, tem carisma." Diziam alguns deles. Quanto mais apoio ele recebia, quanto mais pessoas se mostravam concordando e rindo de toda e qualquer idiotice dele, mais eu odiava a situação, mais eu odiava ele.

Muito disso veio quando percebi que a turma havia se dividido em grupos. Os nerds, as patricinhas, os playboys, os vila, os funkeiros, os sertanejos, os gays entre outros. Aparentemente todos os grupos queriam fazer parte do grupo do Ademar, que não tinha nome, não era classificável, talvez porque toda aquela divisão vinha da visão daquele líder, do grande conquistador Ademar. O engraçado é que os grupos se odiavam mutuamente, era como se ninguém pudesse fazer parte de mais de um grupo, ninguém pudesse ser além da classificação que lhe deram. Não estou exagerando. Era como se aquele maldito tivesse hipnotizado todos. As pessoas queriam ser aceitas ou classificadas pelo Ademar. Sem a opinião dele era como se a pessoa não existisse na escola. Eu só pensava: que merda é essa?

Eu e Cafuza não tínhamos um grupo, éramos a dupla esquizitóide, segundo o Ademar. Cafuza tinha medo da galera. Não conseguia interação. "Parece que eles falam outra língua." Ela me dizia. Eu concordava, mas sabia que para ela era pior. O colégio era particular e considerado finíssimo e isso trazia problemas para minha amiga. Cafuza, ou melhor Gleissiane, um nome merda segundo Ademar, era criada por sua avó, uma diarista que trabalhava para vários pais de colegas. Ela só estava ali porque o dono da escola lhe concedeu uma bolsa de estudo. Para não perder o benefício a garota não podia tirar nota abaixo de oito. Uma vez tirou sete e passou um mês chorando, resmungando, com o estresse à flor da pele, mas no fim perdoaram esse lapso. Ela não saía do meu lado, na sala, no recreio, até mesmo no banheiro parecia querer me seguir. Não queria ficar sozinha a mercê dos outros. Ela não assistia aos mesmos seriados, aos mesmos desenhos, não conhecia as marcas da moda, nem facebook ela tinha. Às vezes achava que ela era de outro planeta. Só que isso me aproximava dela, achava curioso, enigmático, de certa forma um alívio. Eu não gostava quando a percebia me olhando como um cachorro pidão, divagando sei lá sobre o quê e com os olhos a me perscrutar. Não entendia quando ela fazia aquilo. Nossa amizade formou mais vínculos quando dividi com ela meu gosto por livros. No início ela não sabia nem quem era Monteiro Lobato, mas alimentei seu gosto pela leitura e a menina, dedicada como era, acabou por dominar a questão. Não havia nada que eu tivesse lido que ela não acabasse conhecendo.

Na escola eu estava isolado, perdido em um mundo dominando pelo Ademar. Em casa encontrava consolo com meus pais. Porém, algo aconteceu entre eles. Nada pelo jeito muito explicável para um adolescente. Resolveram se divorciar, não pertenciam mais ao mesmo grupo. Foi como se o Ademar tivesse infectado eles também. Não encontrava explicação para aquela separação. Meu pai andava estranho, ficava trancado no banheiro horas e parecia querer manter distância da família, mas era para ser só uma fase. Um clima pesado se instalou na minha casa. Foi quando as dores lancinantes se iniciaram em meu estômago. Algo estava a me consumir, ou talvez a se ampliar dentro de mim. Surgiam sem avisar, pontadas agudas que me faziam contorcer, muitas vezes não conseguia me manter em pé, tinha que me curvar, me enrodilhar no chão. "São gases, filho." Afirmou minha mãe em meio aos seus choros no meio da tarde. Não quis perturbá-la, mas a questão era: se realmente fossem gases, por que é que eles não saíam? Tentava expelir aquilo e nada acontecia. Foram semanas assim.

Quem diria que isso fosse acabar naquela tragédia, um acidente, algo lastimável. Eu desejava o mal para aquele garoto, não gostava dele, até cheguei a desejar sua morte, mas nunca imaginei um acontecimento tão ignominioso. Sim, ignominioso, palavra que assusta até um professor de português.

Continua...

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