TOMO II, CAPÍTULO II: TRAMA

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Como esta cena que acabamos de pintar tinha a comadre muitas outras todos os dias, porque era uma das parteiras mais procuradas da cidade; gozava grande reputação de muito entendida, e ainda nos casos mais graves era sempre a escolhida com os seus milagrosos bentinhos, a palma benta, a medida de Nossa Senhora, a garrafa soprada, e com a invocação de todas as legiões de santos, de serafins e de anjos livrava-se ela dos maiores apertos. E ninguém lhe fosse dar regras, que as não ouvia, nem do físico-mor, se nisso se metesse: era só olhar para uma mulher de esperanças, e dizia-lhe logo sem grande trabalho o sexo, o tamanho do filho que trazia nas entranhas, e com uma pontualidade miraculosa o dia e hora em que teria de ver-se desembaraçada; até às vezes, por certos sinais que só ela conhecia, chegava a dizer qual seria o gênio e as inclinações do ente que ia ver à luz. Já se vê que esta vida era trabalhosa e demandava sérios cuidados; porém a comadre dispunha de uma grande soma de atividade; e, apesar de gastar muito tempo nos deveres do ofício e na igreja, sempre lhe sobrara algum para empregar em outras coisas. Como dissemos, ela havia tomado a peito a causa dos amores de Leonardo com Luizinha, e jurara pôr José Manuel, o novo candidato, fora da chapa.

Começou pois a ocupar o seu tempo disponível nesse grave negócio, e movia uma intriga surdíssima e constante contra o rival de seu afilhado. Gozando da intimidade e do crédito de D. Maria, não perdia junto dela ocasião de desconceituar José Manuel, o que era-lhe tanto mais fácil quanto ele prestava-se a isso, e D. Maria, de espírito demandista e chicaneiro, dava o cavaco por um mexerico. Eis aqui uma das que ela armou ao adversário.

Todos sabem nesta cidade onde é o Oratório de Pedra; mas o que todos talvez não saibam é para que serviu ele em outros tempos. Sem dúvida naquele oratório havia a imagem de algum santo, e o povo devoto ia ali rezar? Exatamente. Mas por que é que hoje não continua essa prática, por que apenas se conserva sobre a parede aquela espécie de guarita de pedra, sem imagem alguma, sem luz à noite, e diante da qual passam todos irreverentemente sem tirar o chapéu e curvar o joelho? Primeiro que tudo extinguiu-se isso pela razão por que se extinguiram muitas coisas boas daquele bom tempo; começaram todos a aborrecer-se de achá-las boas, e acabaram com elas. Depois houve a respeito do Oratório de Pedra muito boas razões policiais para que ele deixasse de ser o que era.

O leitor, que sem dúvida sabe muito bem de quanto eram nossos pais crentes, devotos e tementes a Deus, se admirará talvez de ler que houve razões policiais para a extinção de um oratório. Entretanto é isso uma verdade, e se fosse ainda vivo o nosso amigo Vidigal, de quem já tivemos ocasião de falar em alguns capítulos desta historieta, poderia dizer quanto garoto pilhou em flagrante delito, ali mesmo aos pés do oratório, ajoelhado, contrito e beato.

Quando passava a via-sacra e que se acendia a lâmpada do oratório, o pai de família que morava ali pelas vizinhanças tomava o capote, chamava toda a gente de casa, filhos, filhas, escravos e crias, e iam fazer oração ajoelhando-se entre o povo diante do oratório. Mas se acontecia que o incauto devoto se esquecia da filha mais velha que se ajoelhava um pouco mais atrás e embebido em suas orações não estava alerta, sucedia-lhe às vezes voltar para casa com a família dizimada: a menina aproveitava-se do ensejo, e sorrateiramente escapava-se em companhia de um devoto que se ajoelhara ali perto, embrulhado no seu capote, e que ainda há dois minutos todos tinham visto entregue fervorosamente a suas súplicas a Deus.

Aquilo era a execução do plano concertado na véspera ao cair de ave-marias, através dos postigos da rótula. Outras vezes, quando estavam todos os circunstantes entregues à devoção, e que a ladainha entoada a compasso enchia aquele circuito de contrição, ouvia-se um grito agudo e doloroso que interrompia o hino; corriam todos para o lugar donde partira, e achavam um homem estendido no chão com uma ou duas facadas.

Não levamos ainda em conta as inocentes caçoadas que a todo o instante faziam os gaiatos. Eis aqui pois por que, além de outros motivos, dissemos que tinham havido razões policiais para que se acabasse com as piedosas práticas do Oratório de Pedra.

No tempo em que se passavam as cenas que temos narrado, ainda o Oratório de Pedra estava no galarim. Um ou dois dias depois do nascimento do segundo filho de Leonardo-Pataca correu pela cidade a notícia de um grande escândalo que se passara nesse lugar clássico dos escândalos: uma moça, que vivia em companhia de sua mãe, velha, rica e devota, indo com ela rezar junto ao Oratório, na ocasião da passagem da via-sacra, fugira, tendo levado consigo um pé de meia preta contendo uma boa porção de peças de ouro. Falava-se muito no caso, não porque fosse naquele tempo coisa de estranhar-se, mas porque havia um mistério no sucesso: ninguém sabia com quem tinha fugido a moça.

D. Maria, como todos, estava ansiosa por ver deslindada a questão, quando lhe apareceu em casa a comadre que a vinha visitar.

D. Maria estava sentada na sua banquinha, tendo diante de si uma enorme almofada de renda carregada com seis ou sete dúzias de bilros, e esmerava-se em fazer um largo pegamento. A seu lado, sentada em uma esteira, cercada por uma porção de negrinhas, crias de D. Maria, estava Luizinha também ocupada em fazer renda.

Quando a comadre entrou, D. Maria largou imediatamente a almofada do colo, tirou do nariz e pôs na testa um par de óculos de aros de prata com que trabalhava, e começou logo por tocar no caso que a preocupava. A comadre fez sinal que mandasse retirar Luizinha e as mais crianças; e a conversa caminhou livremente.

— Então que me diz, senhora, da desgraça da pobre velha? Criar a gente uma rapariga com todo o carinho, e no fim ter aquela recompensa!... no meu tempo não se viam coisas destas...

— Que quer, senhora? respondeu a comadre; pois foi ali, nas barbas de todos. Não havia um instante que ela havia chegado com a velha, e que se tinham todas duas ajoelhado ao pé de mim...

— Ao pé da comadre? Pois a comadre estava lá?...

— Estava... que antes não estivesse...

— Mas o diabo, senhora, acrescentou D. Maria, é ninguém saber quem foi o maldito que fugiu com ela...

A comadre interrompeu, dando uma risadinha sardônica.

— Tenho perguntado a todos, e ninguém sabe dizer-me.

— É porque todos estavam cegos...

— Como?

— Mas não o estava eu, por mal de meus pecados, que antes estivesse...

— Pois viu e sabe com quem foi... disse D. Maria, remexendo-se de prazer em cima da banquinha.

A idéia de poder saber de uma novidade que todos ignoravam encheu-a de contentamento.

— Mas então quem foi, vamos; quero saber quem foi o ladrão da moça e do dinheiro...

— Só lhe direi, respondeu a comadre depois de alguma hesitação, se me prometerdes guardar todo o segredo, que o caso é muito sério.

— Ora, bem sabe que eu... é o mesmo que cair num poço.

Apesar de estarem sós, a comadre inclinou-se ao ouvido de D. Maria, e disse-lhe o mais baixinho que pôde: — Foi o nosso grande camarada... a boa peça do José Manuel...

— O que é que diz, comadre?

— Vi, respondeu esta, arregalando com dois dedos os olhos, com estes que a terra há de comer... Se eles estavam ao pé de mim...

D. Maria ficou por algum tempo muda de estupefação.

Memórias de um Sargento de Milícias (1854)Onde histórias criam vida. Descubra agora