TOMO II, CAPÍTULO XXII: EMPENHOS

390 29 0
                                    

O primeiro passo que deu a comadre foi dirigir-se à casa do major a interceder pelo Leonardo; o major porém mostrou-se inflexível: o caso era grave, já não era o primeiro; a disciplina não podia ser impunemente ofendida mais de uma vez; o castigo devia ser infalível e grande. A comadre, que fora cheia de boas esperanças, soube pelo major o que ignorava, o que nem mesmo supunha: o Leonardo não só ficaria por mais tempo preso, como teria de ser chibatado... A pobre mulher, apenas lhe declarou isto o major, caiu de joelhos, chorou, lamentou-se; tudo porém debalde. Saiu desesperada, e com a mantilha caída, toda em desalinho, correu, voou à casa da D. Maria. Ao vê-la entrar naquele estado, D. Maria ergueu-se de sua banquinha, e largou a almofada da renda.

— Que tendes, criatura? que tendes? exclamou. Santo Cristo! o que é? Falai!...

— Ai, Sra. D. Maria do meu coração! que desgraça! respondeu a comadre: que má sina de rapaz... Ora, veja o que me sucede por ter feito uma boa ação!... E eu que sofro e que sinto como se fosse meu filho...

E os soluços a sufocaram.

— Fale, senhora, replicou D. Maria; fale, que me põe numa aflição...

— Vai apanhar, D. Maria... vai apanhar de chibata... ele... o Leonardo...

— Meu Deus, pobre rapaz: ora vejam tudo em que deu; é sina, coitado! aquele rapaz não nasceu em bom dia; não, comadre; isso sou eu capaz de jurar pela salvação da minha alma... Mas não falou com o major? Que lhe disse ele?

— Duro como uma pedra, senhora; a nada se moveu: pedi-lhe pelas Cinco Chagas, pela Senhora Santíssima... tudo embalde, tudo em vão.

— Está bom, não se aflija, comadre; ainda há um meio que eu penso que não há de falhar: vamos à casa dela, que por lá é caminho certo; ela dá-se muito comigo, há de pedir pelo moço.

— Já me tinha lembrado disso; mas na tribulação em que vinha tornou-me a esquecer; se com ela não se arranjar alguma coisa... está tudo perdido.

Os leitores estão já curiosos por saber quem é ela, e têm razão; vamos já satisfazê-los. O major era pecador antigo, e no seu tempo fora daqueles de quem se diz que não deram o seu quinhão ao vigário: restava-lhe ainda hoje alguma coisa que às vezes lhe recordava o passado: essa alguma coisa era a Maria-Regalada que morava na Prainha. Maria-Regalada fora no seu tempo uma mocetona de truz, como vulgarmente se diz: era de um gênio sobremaneira folgazão, vivia em contínua alegria, ria-se de tudo, e de cada vez que se ria fazia-o por muito tempo e com muito gosto: daí é que vinha o apelido — regalada — que haviam juntado ao seu nome.

Isto de apelidos, era no tempo desta história uma coisa muito comum; não estranhem pois os leitores que muitas das personagens que aqui figuram tenham esse apêndice ao seu nome.

Dizem todos, e os poetas juram e trejuram, que o verdadeiro amor é o primeiro; temos estudado a matéria, e acreditamos hoje que não há que fiar em poetas: chegamos por nossas investigações à conclusão de que o verdadeiro amor, ou são todos ou é um só, e neste caso não é o primeiro, é o último. O último é que é o verdadeiro, porque é o único que não muda. As leitoras que não concordarem com esta doutrina convençam-me do contrário, se são disso capazes.

Isto tudo vem para dizermos que Maria-Regalada tinha um verdadeiro amor ao major Vidigal; o major pagava-lho na mesma moeda. Ora, D. Maria era uma das camaradas mais do coração de Maria-Regalada. Eis aí por que falando dela D. Maria e a comadre se mostraram tão esperançadas a respeito da sorte do Leonardo.

Já naquele tempo (e dizem que é defeito do nosso) o empenho, o compadresco eram uma mola real de todo o movimento social.

— Vai mandar aprontar a cadeirinha, disse D. Maria a uma de suas escravas.

— Vamos, senhora, vamos que isto são os meus pecados velhos.

D. Maria aprontou-se, meteu-se na sua cadeirinha; a comadre tomou a mantilha, e partiram para a Prainha.

Maria-Regalada recebeu-as com uma boa risada.

— Que milagre de Santa Engrácia! que fortuna! que alegrão! O que a traz por aqui? Isto é grande novidade!

— É novidade, sim, respondeu D. Maria, porém triste novidade.

Com as honras do estilo, que não eram muitas naquele tempo, foi a comadre apresentada, porque não era conhecida de Maria-Regalada. Primeiro D. Maria, depois a comadre, contaram, cada uma por sua parte, a história do Leonardo com todos os detalhes, e depois de inúmeros rodeios, que puseram a arder a paciência da ouvinte, e quase a fizeram morrer de curiosidade, chegaram finalmente ao ponto importante, ao motivo que ali as levara: queriam nada menos do que a soltura e perdão do Leonardo, e contavam para alcançar semelhante coisa com a influência da Maria-Regalada sobre o major.

— Ora, disse esta tomando um ar de modéstia, eu já não presto para nada... isso era bom noutro tempo... agora... o major... as coisas estão mudadas, D. Maria... depois que ele se meteu na polícia... nem mais nem ontem... quem sabe o que por lá vai!... Mas enfim, D. Maria, eu não sei dizer que não, tenho o coração assim, e sempre o tive... no meu tempo muita gente se aproveitou disto... Eu farei o que puder; vou falar-lhe... talvez que ele me queira atender...

— Há de atender, há de, respondeu a comadre; ele já não está tão velho que se tenha esquecido de todo do tempo de dantes.

— Veremos, veremos. A Sra. comadre sabe lá o que são homens?!...

— Diga-me a mim... se sei!... acudiu esta prontamente.

— Mas então, atalhou D. Maria, o negócio requer toda a pressa, porque de um instante para outro podem chegar a farda ao corpo do pobre rapaz, e depois nem Santo Antônio a tira.

— Não há de haver novidade; ainda havemos chegar a tempo, com a graça de Deus. Para maior segurança vamos todas três daqui à casa do major, e cada uma por nosso lado faremos tudo para livrar o moço.

Maria-Regalada vestiu-se à pressa, tomou a sua mantilha, e ao lado da cadeirinha em que ia D. Maria partiram para a casa do major.

Memórias de um Sargento de Milícias (1854)Onde histórias criam vida. Descubra agora