O Macaco e a Camisinha

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Hoje seria um dia especial. Ao amanhecer eu pensei que seria por ser a primeira vez que havia sido convidado pela escola do Mocambo para dar uma palestra aos jovens sobre Educação sexual. Estava ainda um pouco tenso sobre como seria minha abordagem e também a repercussão na comunidade, visto que, sempre foram muito conservadores. Eu como médico e Lívia como enfermeira ficamos incumbidos de preparar, então, este primeiro momento.

Lívia havia me dito que tinha escutado alguns rumores, cuja origem acreditava ter sido de algum dos pais de alunos, que os "doutores" do posto de saúde iriam ensinar safadezas para os alunos. Confesso que isto me preocupou um pouco, mas não impediria de irmos lá e abordarmos o assunto. Só teríamos que ter cuidado para o aprofundamento ser adequado para a faixa etária que iríamos encontrar.

Recolhemos alguns materiais na Secretaria de Saúde, folders, cartazes etc. Não haveria atendimentos pela manhã daquele dia. Toda a manhã havia sido reservada para o evento previsto a ocorrer no auditório da escola.

Nesta época não era comum utilizarmos recursos audiovisuais como hoje, computador tínhamos em casa, mas notebook e um projetor era uma missão impossível e eu não era nenhum Tom Cruise.

Neste dia em específico, liberamos a presença do motorista, e eu mesmo fui dirigindo. Não era raro eu fazer isso, alguns motoristas ficavam inquietos com alguns atrasos e isso me incomodava, além de que a ausência deles evitava certos pedidos de pessoas, que se acham influentes na comunidade, de ir deixar alguém aqui ou ali. Eu realmente não me aborrecia em dirigir, sempre achei prazeroso. Por fim, ficava até mais rápido, mas tinha suas desvantagens também. Se o carro atolava, ou tinha uma pane não era nada agradável.

Ao chegarmos na escola, começamos a retirar nosso material do carro. Fomos recebidos muito bem por alguns professores e pela diretora. Entretanto Lívia percebeu que um dos pneus traseiros estava muito baixo. Não sabia se estava apenas baixo ou se estava furado, mas com certeza algo deveria ser feito. Olhei no porta malas havia um pneu reserva, mas não estava lá o macaco.

— Lívia, não tem macaco para trocar o pneu.

— E agora Dr. Adriano?

O Distrito do Mocambo era bem pequeno, praticamente de uma rua só, um pouco longa e poucos acessos laterais. Apenas esta rua era calçada. Naquela época haviam apenas três veículos na comunidade, e todos em estado lastimável. Pensei que ao menos poderia existir um mecânico na região.

Perguntei a uma das professoras de havia alguma oficina por perto, e elas indicaram haver apenas uma, mas era de bicicletas. Eu não poderia ser muito exigente. "Quem não tem cão caça com gato".

A que indicaram ficava vizinho a Igreja, no final da rua. Cheguei lá e havia um rapaz com algumas bicicletas desmontadas pelo chão e imaginei que as estivesse consertando. Aproximei o carro e parei quase em frente a porta. Desci do carro e o rapaz veio em minha direção. Foi neste momento que cometi um erro: a forma que formulei minha pergunta.

— Bom dia. O senhor tem algum macaco?

O rapaz me encarou com um olhar estranho, coçou a cabeça olhou em direção das serras e morros e que ficam bem atrás do povoado e soltou uma resposta que me deixou sem ação.

— Moço, faz muito tempo que não tem macacos nesta serra.

Fiquei totalmente sem jeito, sequer falei que o macaco que eu queria era para erguer o carro. Nem, ao menos, cheguei a perguntar se ele tinha compressor para encher o pneu. Agradeci e voltei para o carro e em seguida para a escola.

Lívia estava ainda próxima a escola me esperando.

— Trocou o pneu?

Eu expliquei o motivo de não ter trocado e como o rapaz havia pensado que eu estava procurando um macaco de verdade. Rimos um pouco, mas como sempre ela mais preocupada, ficou com receio do pneu secar mais e ficar totalmente vazio. Mas ela não precisava se preocupar, afinal tínhamos bastante tempo para avisar a secretaria de saúde e a tarde toda para esperar eles enviarem um dos outros transportes.

Fomos então para o auditório.

Já estava lotado de pré-adolescentes, a maioria na faixa etária de 11 a 16 anos. Idade boa para este tipo de assunto. Em um dos cantos da sala estava um senhor de pé que não aparentava ser um dos professores. Dei um "cutucãozinho" em Lívia e pedi para ela saber quem era aquele senhor. Rapidamente ela volta com a informação.

— Aquele é Zé Deltônio, ele é o responsável pela igreja aqui... acho que uma espécie de diácono.

— Será que ele veio para ver o que vamos falar para os meninos? Não estou gostando disso.

— Não sei, mas talvez seja melhor termos precaução com a abordagem.

— Deixe comigo. Vou usar a estratégia de começar pelo conhecimento prévio deles.

Ajustamos todos os folders e materiais visuais que havíamos pego e me posicionei de frente ao grupo para começar me apresentando.

— Bom dia a todos.

— BOM DIA! — Responderam todos em coro.

— Meu nome é Adriano, sou médico daqui do posto de saúde de vocês e recebemos o convite da diretora da escola para conversarmos um pouco sobre Educação Sexual.

Foram alguns segundos de silêncio, mas era perceptível que eles já sabiam do que se tratava e o brilho nos olhos deles denunciavam ansiedade e curiosidade.

— Gostaria de começar com uma pergunta simples. — Coloquei mão no bolso e retirei um envelope com uma camisinha, preservativo masculino. — Alguém sabe o que é isso?

O senhor da igreja, que estava lá nos fundos foi o primeiro a levantar a mão. Neste momento suei frio, não tinha a mínima ideia do que ele iria e nem como iria me responder. Ele tinha um rosto de uma seriedade só. Por alguns instantes torci que mais algum aluno levantasse a mão, quem sabe eu poderia simular que não o havia visto e passar a resposta para algum garoto ou garota, mas ninguém mais levantou a mão para minha infelicidade.

— Pois não seu Zé Deltônio. — O tratei pelo nome com a intenção dele perceber que eu sabia com quem estava falando, isso geralmente intimida mais as pessoas. — O que o senhor acha que é?

— Um Sonrisal.

A princípio pensei que seria uma brincadeira dele, quis sorrir mas segurei, percebi que ele mantinha o mesmo olhar sério de antes. "Mas como ele não sabe o que é uma camisinha com esta idade?" me veio na cabeça, junto com a certeza, que não teria coragem de saber a resposta. Olhei para Lívia, ela escondia o riso com uma das mãos e com a outra fazia um gesto que entendi como "Você começou agora termina".

— Bom, vamos para a próxima pergunta... vocês sabem o que é gênero? — Enrolei sem responder.

E assim a palestra foi fluindo. Neste dia foquei mais nas diferenças entre homem e mulher, sobre a primeira menstruação, das mudanças do corpo, etc. Deixei para falar sobre sexualidade e sexo propriamente dito em um outro momento.

Graças a Deus mais o dia de trabalho chegou ao fim e sem nenhum problema, o pneu continuava baixo, mas não parecia furado. Arisquei voltar para casa assim mesmo, e deu certo. Ao sair da escola, os professores gostaram tanto da palestra que já deixaram marcado a próxima. Tomara que seu Zé Deotônio falte este dia, pois vou tentar novamente falar sobre a camisinha.


O diácono para as igrejas católicas contemporâneas passa desde o trabalho administrativo nas arquidioceses, até funções de porteiro e vigia durante os cultos e missas. Além disso, sob a observação de um sacerdote, o diácono também pode realizar algumas cerimônias religiosas, como batismos e abençoar casamentos.


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Memórias de um Médico no SertãoWhere stories live. Discover now