Capítulo 1

4 0 0
                                    


Macabea

A moça sapateou perdendo o equilíbrio e foi ao chão de pó. Levantou poeira das rachaduras que se estendiam ao infinito. O marido veio ao seu resgate, mas ela quis levantar-se por si só. Nunca fora mulher de depender de homem.

Macabea completou seus trinta anos no último sol, recebera em troca dois casarões para limpar de joelhos, rezando ao divino, pagando da penitência dos outros.

Os cabelos pretos desciam até o centro das costas, a cor negra e as curvas provocantes roubavam dos homens a castidade, embora sua beleza de pouco valesse no Vale.

Os joelhos se puseram de pé, recolheu a mão da pequena garotinha, sua filha, ignorante do mundo e suas contradições. O marido repetiu o gesto com o filho mais velho. Avançavam novamente por sobre o caminho sem vegetação.

Carregavam tudo o que tinham presonas costas, não que fizesse diferença, eram badulaques que se prendiam e chacoalhavam a cada trocar de pernas no caminho sem rumo. Macabea não olhava para trás, bem sabia que o passado sempre fora de lhe perseguir aonde ia. Há pessoas que nascem com um rastro de tragédia arquejado sobre os ombros, no Vale esses seres desprezíveis se amontoavam feito vermes.

- Macabea! – berrou uma voz infantil vinda de perto.

A mulher cessou os passos feito em comando, encarou o marido com os olhos tristes, perdidos entre a dúvida e a derrota. Um garotinho jovem, cabelos louros, bem vestido, surgia a cavalo diante da família em fuga.

- O que faz tão longe da casa grande Gabrielzinho? –perguntou Macabea com doçura na voz. – Sua mãe lhe dará castigo se sujar a roupa.

Gabrielzinho encarou o grupo do alto dos olhos verdes, a pele pálida refletia os raios do sol, visivelmente menos cruéis a tal dignidade de nascimento. O cavalo arquejou quando o menino desceu ao solo com botas caras.

- Aonde vai Macabea? –perguntou com inocência fingida.

- Estamos a passear Gabrielzinho.

O garoto se aproximou feito serpente, que cerceia a presa, farejando mentiras e fingimentos.

- Não estão deixando o Vale não?

- Não. – respondeu o marido mostrando ter voz.

Macabea se agitou, mas era tarde demais.

- Não se dirija a mim. – cuspiu a criança. – Minha mãe disse que não pode.

O marido cerrou os punhos, as crianças se escondiam atrás das pernas dele.

- Volte a casa menino, sua mãe deve estar procurando.

A criança manteve os olhos cruéis caídos sobre a pequena menina que abraçava a coxa do pai.

- Que coisas mais feinhas são seus filhos. – debochou o menino, depois voltou ao cavalo e debandou-se sem mais palavras.

A mulher ignorou a perversidade sem desaforo ou fúria, apenas pegou as crianças pelas mãos e quis continuar o caminho. O pai permaneceu algum tempo parado sobre a estrada, depois seguiu com os olhos caídos para baixo.

- Devemos correr. – acrescentava Macabea. – Estamos em cima da hora, o sol já pousa sobre o céu...

As curvas não foram muitas quando a família chegou às margens do rio que cerceava o Vale. Aquela abundância de águas e correnteza podia soar feito miragem no meio do sertão, mas não passava de outra ironia das mais cruéis. O lixo que flutuava por sobre as ondas vinha de indústria distante, a imundice chegava disfarçada de água do mar, até formar ilhas químicas e fedorentas na paisagem. Beber dali era envenenar-se aos poucos, morte dolorosa.

O Vale dos SuicidasWhere stories live. Discover now