Capítulo 2

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Firmino

Firmino Batata fora rapaz formoso em outra vida. Ao menos era o que a mãe comentava com as paredes. De garoto analfabeto evoluiu a adolescente letrado em música. Amava o violão que o pai lhe deixara de herança, único bem da família que o tempo não carcomeu. Talvez quase isso, apenas três cordas restavam presas em amarrações improvisadas. Grossas, firmes, afinadas.

Firmino virou homem durante uma manhã sem nome, depois de adulto morava sozinho na última casa, do lado de lugar nenhum.

A mãe partira durante uma das poucas chuvas que presenciou. A tosse veio a leva-la finalmente ao descanso eterno. O jovem rapaz ainda lembrava-se dos vizinhos correndo nas ruas em comemoração pelas lágrimas do céu, enquanto as suas molhavam seu rosto.

Firmino escolhera aproveitar a enxurrada, beber diretamente das nuvens, atirar-se por sobre a lama que morreria no sol seguinte. Escolheu esquecer-se do cadáver que repousava sentado sobre a varanda. Poderia chorar pela mãe pela manhã, assim os vizinhos atestariam sua tristeza.

Dona Esperança não foi a última a morrer. Velha, meio surda, meio tudo... Obesa de fome por inteira. No Vale as contradições eram leis, seguidas a finco com ânsia de punições. A senhora tinha as pernas grandes demais para andar, o corpo pesado demais para qualquer movimento. O filho cuidara dela feito pai, o que matou dentro de si os pensamentos de seguir com a carreira musical.

Esperança contava do pai que morreu na guerra. Mas os garotos debochavam de suas palavras nos ouvidos de Firmino. Contavam sua própria versão:

O pai se atirara de cabeça em pedra pontuda, por azar perfurou o olho e ficou ali, agonizando enquanto via apenas metade do céu. Metade de si foi o que conseguiu enxergar a vida toda ao lado de Dona Esperança. As más línguas contavam da morte real e a velha viúva ria da verdade delas.

Firmino acordava antes do sol, batia as botas a fim de retirar o barro, vestia roupas surradas e ia praticar seu violão debaixo do pé de nada. Uma bela árvore que vencia a seca, o calor, a estiagem, embora nenhum fruto ou flor ela mostrasse aos olhos do Vale. Sua sombra era o único tesouro aos homens, mas somente um parecia apreciar.

Foi em mais uma daquelas manhãs, comuns e sem cor, que passos vieram cantarolar na estradinha de terra quente. Era Macabea, acompanhada dos filhos, acuados e chorosos, pele e osso, desastrosamente entristecidos.

Firmino se levantou e deixou o violão repousar na sombra, os passos foram se aproximar da mulher, semblante duro, escondendo emoções adormecidas.

- O Vale já sabe. – comentou Firmino com aspecto de desgraça.

A beleza prometida pela mãe se esvaíra antes que ele visse seu reflexo. De certo que os espelhos eram caros e as águas do rio eram turvas demais para mostrar boniteza. Estava com pouco mais de vinte e sete, mas aparentava mais de quarenta. Os braços eram flácidos e pálidos, os cabelos desapareciam do topo da cabeça, os olhos se escondiam em rugas e olheiras castigadas pelo sol.

- Foi Miguel? – perguntou Macabea exausta demais para elevar a voz, as crianças emburradas de choro.

- Dona Chuva. – respondeu Firmino.

- Aquela desgraçada, sabe mais da vida dos outros que do próprio nariz. – reclamou a mulher. – Vamos a casa, não tem jeito.

Os filhos quiseram protestar, mas a mãe rodopiou pelo barro levantando poeira e deu uma sacudidela em cada um, um tapa surdo no rosto do menino, um safanão na menina e os dois começaram a chorar sem freios.

- Não machuque os meninos. – Firmino protestou.

- Se eles choram, eles têm pena. – disse a mulher pegando os filhos um em cada mão.

Ela já ia partindo em direção ao Vale quando Firmino se adiantou na sua frente.

- Macabea, eles estão olhando, perdoe viu?

Macabea encarou o homem nos olhos, depois viu os vizinhos formando fila no caminho que levava para a casa.

- Se preocupe não Batata, o maior ferimento que podia, a vida me deu hoje.

Firmino respirou fundo, afogou-se na pouca umidade e cuspiu no peito da mulher, os filhos ainda choravam inconscientes. Macabea foi descer a estradinha, largou as crianças que correram para casa. Seus pés calejados pouco se importavam com o arder do solo, se acostumaram a dor. Assim como os olhos, sempre fortes e decididos.

A cada passo um anônimo cuspia no seu corpo, no rosto, nos cabelos, na alma. Era hora de humilhar um ser, que de tão desprezível quis fugir dos seus iguais. Firmino encarava a caminhada de longe, em silêncio, de luto pela gente que se detestava tanto, o ódio que herdaram dos patrões, uns contra os outros levantavam o dedo para acusar malefício.

Firmino Batata pegou o violão, soou as três cordas que tinha, cantou uma nota qualquer e desistiu da melodia. Era dia de sol, ensolarado com pássaros se escondendo dos céus. Era dia de desespero, de calmaria, de tormenta, de maresia. Era dia feito outro, dos piores da vida de Macabea, dos muitos que se amontoariam sem espaço para a esperança.

No último instante lembrou-se da mãe sentada morta sobre a varanda.

Ela viu a garoa? – deixou os pensamentos cochicharem.

Se viu não sabia. E lá cadáver pode ver as coisas? Firmino guardou o violão e quis esquecer a mãe. Dor passada é faca que a gente amola para cortar o dedo. Quis encarar somente aquelas que não podiam evitar. No Vale tudo dói, menos a dor que pedimos. 

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⏰ Last updated: Jun 26, 2017 ⏰

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O Vale dos SuicidasWhere stories live. Discover now