Quimera

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Tudo era cinza e morbígeno.
Nada parecia ter vida ali, nem mesmo os corpos que andejavam sem objetivo pelos corredores que mais pareciam labirintos para lugar nenhum. As feições que se misturavam à paisagem austera eram inexpressivas; vazias de qualquer sentimento ou reação.
A sensação era que absolutamente todos com o tempo perdiam o arbítrio para a comodidade e o que sobrara da esperança para a frustração. Tudo se esgotava aos poucos enquanto o rancor sugava toda a energia do seu ser.

Johnny me apresentou ao lugar com minúcia, explicando cada particularidade como se eu demonstrasse algum interesse em conhecer o poço sem fundo onde eu me joguei de cabeça.

"— As grades do segundo andar são trancadas todos os dias às 10h da noite, então até às 6h da manhã você só pode transitar pelas celas e banheiros. Normalmente quando alguém chega de fora os guardas recolhem alguns detentos pra não causar tumulto, por isso os corredores pareciam meio vazios, mas não se engane... Aqui tem muito mais gente do que parece e mais da metade desses caras já mataram alguém, então fique bem esperto." - ele discursava com a naturalidade de quem já havia repetido aquelas palavras pra vários que passaram por ali. A curiosidade em saber o segredo de como ele podia parecer tão em casa formigava dentro de mim, mas eu teria muito tempo pra descobrir cada podre daquele lugar e provavelmente também me sentir tão a vontade quanto ele.
"— Você já teve problemas com alguém aqui?" - questionei com pudor afinal ele podia fazer parte da porcentagem de homicidas.
"— Jaehyun..." - olhou fixamente em meus olhos fazendo minha pele gelar pelo contato intimidador. "Você pode até se esforçar em não arranjar problemas, mas eles encontram você mais cedo ou mais tarde. É impossível escapar."
A verdade era que eu ainda não havia  me enxergado dentro daquele lugar.
Eu me sentia como um infiltrado; totalmente deslocado e perdido em quais ações tomar e o quê dizer, mas eu fazia parte daquela dimensão. Eu era como qualquer um ali e a compreensão disso começava a me atormentar.
"— E você tem algum conselho de como evitar que os problemas me achem tão cedo...?" - observei seu semblante vagar o ambiente com decepção, como se a resposta também estivesse aprisionada em uma daquelas celas e só pudesse ser descoberta quando enfim estivesse livre.
"— A única coisa que eu posso dizer é pra você escolher desde já qual vai ser seu personagem aqui dentro; moçinho ou vilão. Se você tiver medo da morte, então, cara... Sinto muito, mas você vai ser usado de todas as formas imagináveis, mas se você quiser correr o risco, do jeito certo, talvez você tenha uma chance de se foder menos." - a seriedade no seu rosto beirava a preocupação. Era nítido que ele não queria que eu escolhesse o mesmo papel que o dele e, que eu não estivesse enganado, mas talvez Johnny fosse alguém real dentro de toda a ficção daquele lugar.

Andamos sem contenção pelas alas vizinhas. Todas eram assustadoramente lotadas e o cheiro intrínseco à elas era um misto de urina velha e desconfiança. Obviamente era quase insólito que uma amizade com todas as suas regras e condições pudesse se criar entre aquelas pessoas, mas segundo o Johnny, havia algo que se assemelhava com companheirismo quando eles se defendiam entre lâminas e sangue pra protegerem uns aos outros.
Isso me fazia refletir sobre a possibilidade de ainda existir o mínimo de humanidade ali dentro e que talvez eles só haviam se esquecido dela porque ser humano em um lugar como aquele era considerado uma fraqueza.

A área de socialização das alas era um enorme espaço com bancos e mesas de madeira revestida parafusadas ao solo. Além disso havia uma televisão no centro de uma das paredes e na outra um grande relógio que só servia pra lembrar todos ali que as horas, os dias, os meses, os anos... O tempo passava e eles continuavam naquela merda.

"— Olha quem apareceu por aqui..." - uma voz recentemente conhecida exclamou de uma das mesas da ala C. "Meu amigo do lavatório!" - com o mesmo sorriso de antes, o rapaz de cabelos bem penteados se aproximou envolvendo um dos braços por trás do meu pescoço. "vendo que você não relaxou nem um pouquinho ainda... Ei, Johnny, você não levou ele pra lá ainda?" - eles se entreolharam com familiaridade, provavelmente já eram velhos conhecidos.
"— Por favor, Doyoung... " - o mais alto revirou os olhos me desvencilhando do outro que permanecia sorrindo ao observar sua reação.
"— Pra lá aonde?" - perguntei sem disfarçar minha curiosidade.
"— Para o depósito." - uma terceira voz surgiu na conversa. "É lá que tudo o que deveria ser proibido aqui dentro rola." - o rapaz de lábios bem definidos e olhar profundo explicou simplista.
"— Ok, ok, muita informação pro seu primeiro dia, cara." - me puxou pelo antebraço bruscamente encarando com rigidez o outro rapaz. "Vamos, ainda preciso te mostrar as outras alas."

Cortamos a ala C em direção ao bloco de celas que fazia fronteira com a ala B em passos largos. Johnny olhava para trás repetitivamente como se algo estivesse o incomodando. Eu apenas segui seu ritmo sem questionar o comportamento repentino mesmo estranhando o fato de retornarmos ao ponto de partida daquele tour sendo que ele acabara de dizer que ainda precisava me apresentar o restante do presídio.
Subimos o lance de escadas que dava para o segundo andar, onde ficavam as celas, em silêncio. A figura simpática e espontânea de minutos atrás desapareceu em um semblante apreensivo, quase atordoado.
Antes de finalmente conhecer o cômodo no qual eu ficaria, Johnny me pressionou com moderação contra a parede gélida iniciando uma conversa que pelo seu tom de voz era pra ficar somente entre nós dois.

"— Jaehyun, eu não te conheço e você também não me conhece. Você tem total liberdade pra ignorar tudo o que eu digo, mas se você quiser levar ao menos uma coisa em consideração, então que seja ficar bem longe daquele cara." - as palavras eram sussurradas como se ninguém pudesse ouví-las, de contrário sua integridade estaria seriamente comprometida. "Taeil não é o que aparenta ser e pode ter certeza que se envolver com ele será definitivamente o seu fim aqui." - ele exprimia veracidade com o olhar focado nas minhas pupilas quase me obrigando à encará-lo enquanto eu tentava manter minhas pernas firmes. "Eu já assisti esse filme e o final não é feliz... Não seja outra carta fora do baralho, Jaehyun."
Eu vacilava conforme as palavras escorriam dos seus lábios inundando minha mente sem sutileza; é sempre impactante quando alguém tenta te alertar do perigo e você apenas se concentra em descobrir a razão do seu risco.

Eu conheço muito bem cada defeito meu e tenho a plena consciência de que existem outros ainda não descobertos que habitam meu paralelo na espera do momento exato para explodir, como uma bomba programada; um deles e provavelmente o que me faz agir impulsivamente tornando minha existência tão suscetível, é essa mania incontrolável de infringir a barreira do bom senso me lançando sobre as chamas do transe iminente ansiando em me queimar.
Talvez ser audacioso fosse uma atitude incoerente quando se subsiste no risco constante, mas eu não podia negar que o frenesi era viciante.

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⏰ Última atualização: Jun 28, 2017 ⏰

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