CONSULTA 02

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— Seus pais acham que um dos motivos pra você ter tentado suicídio foi culpa deles. — Sua voz é calma e suave. Não sei o que ela faz para conseguir falar desse jeito o tempo inteiro. — Você concorda?

— O quê? — digo. — Não! É claro que não!

Essa resposta saiu da minha boca rápida e automaticamente. Como um tiro. Como se eu estivesse pronta para essa pergunta e tivesse preparado essa resposta.

A janela da sala está aberta novamente, mas dessa vez eu não me incomodo. O ar que vem de fora refresca um pouco do calor que está dentro do consultório.

— Tem certeza? As brigas deles não te abalaram de maneira alguma?

Eu já ia responder que tinha certeza absoluta que não, mas acabo hesitando. Eu evitei esse assunto na primeira consulta porque não queria parecer que eu culpava meus pais por tudo de ruim que acontecia na minha vida. Mas será que culpo?

— Como sabe das brigas? — indago. — Eu não contei que eles brigavam.

— Eles contaram — fala ela. — Estão preocupados que o problema de você sejam eles. Você acha isso?

Dessa vez, a resposta não sai como um tiro. Ela é demorada. Até porque eu penso, por um mísero instante, em dizer que sim. Mas a resposta certa é:

— Não.

— Então as brigas não a afetavam?

Droga, ela é boa.

— Afetavam, mas... — Engulo em seco, pensando nas próximas palavras. — Mas eles não foram o fator principal para eu ter feito o que eu fiz.

Então, eu solto um longo e demorado suspiro. Talvez eu tenha dado a resposta certa. Eu espero ter dado a resposta certa. Não quero que ela pense que eu tentei me matar por causa dos meus pais. Não foi isso o que aconteceu.

— Você se lembra de alguma briga que tenha sido um fator pra você ter feito o que fez? — pergunta ela. Não mudou o tom de voz nenhuma vez desde semana passada.

— Ah, houve muitas brigas... — respondo.

Começo a contar e relembrar os primeiros momentos em que pensei que meus pais estariam em uma situação melhor se eu nunca tivesse existido. A primeira vez que meus pais brigaram feio foi algo um pouco traumatizante para mim.

Eu tinha dez anos. Suicídio era coisa para pessoas idiotas e fracas. Eu era feliz, mesmo cega. Já havia me acostumado a viver com aquilo. Às vezes, até achava que era melhor ser cega. Minha família e meus amigos tentavam implantar essa ideia em mim.

Minha mãe ainda tinha o carro dela, então ela podia me buscar na escola — que era bem mais longe da minha casa comparando com a que eu estudo agora. Quando entrei no carro, ela falou:

— Tenho uma surpresa pra você.

Ao chegarmos em casa, fui recebida a latidos. Havia um novo integrante na família! Meu pai até faltara ao trabalho para ir fazer essa enorme surpresa.

A cadelinha era tão pequenininha. Eu sentei no chão, a abracei, brinquei com ela...

— Você gostou? — perguntou minha mãe. — Ela vai ficar bem grande.

Por mais que eu não entendesse nada sobre raças de cachorros, fiquei com vontade de perguntar do mesmo jeito:

— Que raça ela é?

— Labrador — falou meu pai. — Ela é branquinha, meio amarelinha...

— Amarelinha? — perguntei.

Invisível (DEGUSTAÇÃO)Where stories live. Discover now