O Caminho de Caminha

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― Notou como aqueles últimos todos trajavam a indumentária dos nativos? ― puxei assunto enquanto marchávamos sobre lama e entre galhos e flores que cresciam em direções caóticas.

― Não pude deixar de fazê-lo. O senhor sabe que costumo me ater ao ceticismo e que acredito que as forças que não controlamos agem de maneira sutil, mas a possibilidade de que esse povo esteja sob uma sinistra maldição assombra-me os pensamentos desde que deixamos a praia.

― Chego a considerar a mesma possibilidade, embora você me conheça por um homem de não resistir ao misticismo. Estas pessoas não me parecem de tudo malignas, contudo: as lágrimas no rosto daquela índia transluziram-me a pura expressão do assombro de uma pobre alma que não entende as forças com que brinca. Espero que os jesuítas trabalhem bem para salvar estas gentes do paganismo, pois confesso-te, me apeguei aos selvagens.

― É bem verdade que são simpáticos os que encontramos, e que não tivesse me afeiçoado a eles, não teria aprendido a comunicar-me em sua língua materna, mas digo-te que sinto bastantes saudades de Portugal.

― Poderá saciar suas saudades à vontade assim que estivermos terminados aqui. Por ora, concentremo-nos nos... zumbis. Lembram-me os zumbis das lendas que ouvi da África, e estou pensando em chamá-los assim, de agora em diante.

― Desconheço as lendas, mas recordo-me que a índia o chamou de "ipupiara". Isto significa "aquele que veio d'água", é um nome bastante apropriado e, admito, agrada a meus ouvidos.

Calei-me por alguns instantes, recolhi-me a meus pensamentos, e deixei ao Bartolomeu apenas o quase-silêncio constrangedor dos galhos se rompendo sob nossos pés e das aves cantando pelos céus, e mais nada.

― Sente-se bem, capitão?

― Sim, sim. Estou apenas a considerar o que me disse há pouco... ora, se a índia tinha um nome para o monstro, provavelmente o povo dela já teve contato com eles, não? Quem sabe, se formos à aldeia, o pajé saberá como remover esta maldição funesta?

― Ainda considero a possibilidade de que seja uma praga infecciosa em vez de qualquer tipo de artifício místico, e por cima disso, teremos sorte se encontrarmos a população viva, considerando que as feras que há pouco derrotamos carregavam cocares e pinturas típicas dos tupi, mas visto que ainda não nos deparamos com coisa alguma, acho cabível investigarmos por lá.

― Seu otimismo me aquece o coração, Bartinho. Siga-me! ― chequei a bússola e comecei a guiá-lo pelos caminhos da selva.

Quando se ocupa uma posição como a minha nestas colônias, é natural que se aprenda o caminho até as aldeias próximas da vila tão precisamente bem que se pode encontrá-las a partir de qualquer ponto da mata, e isto foi exatamente o que fiz: bastou a nós alguns minutos de caminhada até que atingíssemos a clareira onde a oca de palha se erguia frente às correntes do rio Perequê.

Presumi que os tupi já haviam visto os monstros, pois não estavam todos esparsos pela terra batida cuidando de suas atividades como era habitual, mas sim recolhidos dentro da cabana, onde alguns guerreiros guardavam posição com lanças firmes em mãos.

Nos dirigimos até a porta, ainda que mantendo alguns bons passos de distância para evitar que fôssemos apunhalados ali, e anunciamos nossa chegada. O que foi dito, precisamente, não sei dizer, pois Bartolomeu cuidou das conversas dali em diante. Portanto, o que logo será narrado é reminiscência de minhas memórias e impressões e será indubitavelmente corrompido pelo esquecimento e por meus próprios pensamentos no instante.

Ira de TupãWhere stories live. Discover now