17ºCapítulo

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Atualmente - 9 de janeiro

As pedras da calçada estavam naquele momento húmidas, não pela chuva e sim pelo sangue do homem rechonchudo conhecido por todos. E não pude deixar de comparar aquele sangue vermelho intenso à maçã que eu havia roubado no dia anterior.

A maçã. O sangue. Os olhares acusadores pousados em mim.

Eu escolhi fugir, como o excelente covarde que sempre fui.     
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Foi um medo incerto, com a raiva desvanecida e a culpa ainda meio ocultada. Durante algumas horas, escondi-me no meu recanto secreto, feito de sombras, onde os aldeões nunca me haveriam de encontrar. Mas, por fim, ganhei uma frieza secreta para visitar o local do crime, de onde os guardas reais já haviam partido, carregando o corpo.

Escondido numa esquina deserta, a frieza que me havia assolado havia-se transformado em culpa, quando observei a menina bronzeada de cachos morenos, agarrando um coelho de peluche, observando uma multidão ainda estupefacta. A rapariga chorava, mas todos a julgavam mais uma mera espetadora quando, na verdade, ela passara a ser uma órfã no momento da morte daquele rechonchudo conhecido por todos.

Um calafrio percorreu-me o corpo quando o meu olhar se cruzou com o da menina, que não o procurou desviar. Os lábios deixaram de lhe tremer, as suas pernas deixaram de vacilar. Nós dois, desconhecidos um pelo outro, sem um nome para clamar. No entanto, não foram precisas palavras durante aqueles curtos instantes, pois o seu olhar de reconhecimento dizia-me tudo: ela sabia o que eu tinha feito.

Escondi-me novamente na esquina, procurando não descobrir o olhar escuro e intenso da pequena. «Quero ajudar-te...» pronunciei na minha mente, mas meros segundos depois relembrei-me que na verdade fora eu a causar o seu sofrimento. A minha ajuda deixara de ser credível.

Sentado numa ruela deserta e sombria e enroscado sobre o meu próprio corpo, numa posição fetal, foi com facilidade que pude sentir o seu cheiro infantil a rebuçado roçar na minha pele. Nesse momento, soube que, para a eternidade, o meu sentimento de culpa seria acompanhado por aquele perfume açucarado.

Evitei o seu olhar, esforçando-me por travar o tremelicar dos meus dedos e a palidez do meu rosto. Mas ela, insistente, sentou-se diante de mim sendo que, devido ao meu olhar cabisbaixo, apenas consegui observar as suas sandálias cor-de-rosa.

Por momentos, quando os seus cabelos esvoaçaram ao ritmo do vento, os seus dedinhos minúsculos dos pés tamborilaram nas sandálias e os seus dedos da mão direita tocaram-me no queixo a fim de o erguer, julguei que os seus olhos grandes e a sua voz doce iriam expressar simpatia e compreensão.

Enganei-me.

Quando por fim ergui o olhar na sua direção, pude perceber a sombra que lhe assolava o rosto. Os seus olhos semicerraram-se enquanto a sua mão escorregava do meu queixo, até assentar no meu braço.

- Eu sei o que fizeste.- Sussurrou ela, numa voz que, além de desesperada, procurava ser ameaçadora. E tornou-se isso mesmo quando ela cravou as suas unhas compridas na pele do meu braço.- E ninguém te irá perdoar. Nem a própria Morte, quando te levar.

Procurei arranjar palavras para argumentar, mas não encontrei nada que valesse a pena salientar. Ao invés, ela continuou a sua ameaça.

- Não passas de um ladrão estúpido que, tal como o pai dizia, é capaz de deixar de amar apenas para sobreviver. E sabes que mais? Irás sobreviver e aprender a amar. E, quando isso acontecer, a vida fará separares-te da pessoa que amas, tal e qual como me fizeste. E irás viver sôfrego eternamente.

Para Onde Quer Que Ela Me LeveWhere stories live. Discover now