23ºCapítulo

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Atualmente - 9 de janeiro

O jardim brilha, todo ele. Roseiras vermelhas como o sangue, flores de cores vivas e arbustos redondos e amigavelmente aparados reinam neste pequeno e acolhedor espaço. E, apesar de estarmos em pleno janeiro, consigo sentir o calor entranhar-se na minha pele, para além da minha blusa cinza. Quase consigo sorrir quando olho em redor, para esta paisagem paradisíaca.

Mas depois estaco.

Para além de uma árvore baixa e cuidadosamente aparada, junto ao muro de pedra cinza, encontra-se uma figura franzina e encurvada. O seu cabelo grisalho está habilmente preso num gancho de ouro que brilha e rebrilha quando exposto ao sol, e um vestido negro envolve o seu corpo, que possui tanto de rugoso quanto de frágil. Mas quem quer ela enganar? Aquele tecido negro não espelha mais as suas emoções: afinal, o luto dela já não é genuíno.

Uma inesperada raiva apodera-se de mim. Alguma vez as suas intenções foram genuínas?

Tantas rugas engenhosas que vincam trilhos na sua pele, formando uma máscara controversa: um sorriso facilmente confundido com um esgar de tristeza. Esteve ela este tempo todo a rir-se de mim, e eu a confundir o seu riso com um sôfrego choro? Talvez.

Por fim, cerro os punhos e aproximo-me dela, determinado, embora sabendo que, apesar de tudo, a minha determinação em nada a afetará.

- Eu sei que foi você.- Disparo rudemente, lançando um olhar acusador e enfurecido à sua nuca, um ninho grisalho toda ela.

A mulher roda sobre os próprios calcanhares e observa demoradamente a minha expressão. O seu olhar demonstra... alívio? Sim, alívio. Um sorriso suave a impor-se e um olhar calorento e de profunda aceitação. Os seus olhos brilham num gesto de boas vindas, como que a felicitar-me pela descoberta.

- Porquê?- Pergunto, roçando o limiar entre a raiva e a indignação.

- Oh querido, há tantas coisas que nunca compreenderás.- Sorri-me afetadamente, o que só contribui para aumentar a minha raiva.- A nossa família é uma delas.- Suspira, o seu olhar demonstrando uma sensatez antiga e longínqua que no fundo não existe.

- Então explique-me.- Ela abana a cabeça, como se a razão de toda esta mentira fosse incompreensível para mim, voltando a dedicar a sua atenção ao tronco desgastado de uma árvore decadente. Por fim, sucumbo à raiva e expludo:- Não ache que ter uma aparência mais velha é sinal de sensatez, tal como a minha aparência mais nova é sinal de estupidez. Sou mais antigo do que pareço, por isso explique-me.

Ela volta-se novamente para mim, de olhos esbugalhados, e durante breves momentos fica sem palavras. Eu próprio fico sem palavras. De onde veio esta raiva repentina? Apenas pela velha Josefa ser uma assassina? Ou algo mais?

Ou algo mais?

Ela volta-se para a árvore rugosa, passando o indicador desgastado pela sua superfície vincada. Continua a percorrer aquele caminho sinuoso, guiada pelas imperfeições do tronco.

- Tudo é uma cadeia.- Murmura ela após alguns momentos, como que numa desculpa, ainda de costas para mim. Algo no meu peito abranda, para por breves segundos até, porque compreendo neste instante que, outrora, já pensei o mesmo, já o ponderei, exatamente com as mesmas palavras, com o mesmo cuidado e timidez.- Cada ação é apenas uma consequência de outra... ainda que por vezes os nossos movimentos sejam pequenos, inofensivos...

- ... E tudo leva ao mais incontrolável dos cenários, o mais medonho, o mais terrífico.- Completo, sem abandonar a minha expressão sisuda, que nos separa como um muro grosso e intransponível, e o meu comportamento hostil, e ela surpreende-se pela segunda vez nesta conversa.

Para Onde Quer Que Ela Me LeveWhere stories live. Discover now