Capítulo 3

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― Dona Geralda, a senhora viu a filha da Célia dormindo na varanda? Se ela não ficasse fora até tarde toda noite, não se cansaria tanto.


Depois que a mãe voltou para o trabalho, Marina lavou a louça, tirou pó da cristaleira antiga de carvalho, trocou as cortinas da sala por outras limpas, organizou o seu guarda-roupas e o da mãe e passou cera líquida no piso de cerâmica vermelha ― o antigo e clássico "vermelhão". Ao terminar a faxina a jovem fez café e foi sentar-se na varanda com uma caneca grande, acompanhada de uma lata de biscoitos.

Debruçada sobre o guarda-corpo, observava o pôr do sol enquanto se concentrava em coisas simples como morder biscoitos ou sorver goles do líquido preto fumegante que funcionava como um combustível em momentos de cansaço. Adormeceu sobre o guarda-corpo antes que a cafeína fizesse efeito e acordou com a mãe chamando o seu nome.

― Marina! O que está fazendo aí? Por que não deitou na cama?

― Eu não pretendia... ― Marina interrompeu a frase para soltar um longo bocejo. ― dormir aqui.

Seguindo a filha letárgica, Célia entrou em casa. E enquanto passava manteiga no pão, olhou à sua volta, observando as mudanças.

    ― Não acredito! Você fez mesmo tudo isso? ―perguntou ao acomodar-se no sofá menor. Marina, exausta, limitou-se a afirmarcom a cabeça sem tirar os olhos da TV, zapeando os canais em busca de algo paraassistir.    

Minutos se passaram até que Célia, não resistindo, quebrou o silêncio:

― E então, quem é ele?

Marina encarou a mãe sem entender.

― Quem?

― O garoto em quem está pensando. 

― E quem disse que eu estou pensando num garoto? Porque não posso estar pensando em outra coisa? ― Marina questionou na defensiva, tentando entender de onde a mãe tirara aquela conversa.

― Tipo o quê? ― insistiu Célia, arrancando os sapatos de saltos médios para afundar os pés no tapete.

― Tipo... Sei lá... O quanto eu amo você! ― declarou com ironia.

― Bom... Você fez faxina no dia em que eu te pus de castigo e isso só pode significar uma coisa: que está com algum garoto entranhado na cabeça e não consegue tirá-lo de lá; não tem nada a ver com o seu "grande amor" por mim.

Marina não soube como contestar tamanha perspicácia. E quando tentou balbuciar uma negativa, foi interrompida:

― Ou você me diz o nome, ou terei que investigar por aí. Quem sabe a dona Maria ou a dona Geralda sabem de alguma coisa...

― Que droga, mãe! Não tem garoto nenhum.

― Quanto mais você demorar, mas eu ficarei tentada a sair perguntando. Numa cidade pequena como a nossa, logo terei várias hipóteses.

Marina balançou a cabeça com impaciência como se fosse a adulta da casa e a mãe a adolescente.

― Você é impossível, mãe! E para a sua informação eu não estou pensando nele "desse jeito". É que foi estranho, eu o conheci hoje, mas tive a sensação de já tê-lo visto antes.

― O nome, Marina!

― É Estêvão, caramba! ― afirmou, cobrindo o rosto com as mãos.

A reação de Célia, ao contrário do que a filha esperava, foi de silêncio. Ao abrir os dedos que cobriam-lhe os olhos, Marina notou que ela olhava para além da janela, para o céu em tons de laranja que ainda não tinha virado noite. Era comum a mãe ficar fora do ar às vezes, mas nunca a vira ficar assim durante uma conversa em que estivesse tão interessada.

― Ei, mãe! Tudo bem?

― O quê? Disse alguma coisa?

― Você ficou estranha.

― Bobagem ― disse Célia, levantando-se. ― Então... Como sua mãe eu devo repreendê-la por pensar tanto em um garoto, ainda que, como você mesma disse, não seja "daquele jeito". No mais, mantenha o foco nos estudos que você ficará bem.

Célia voltou para a cozinha a fim de lavar a pouca louça que sujara, e quando saia para o quarto dizendo que ia tomar banho, Marina perguntou:


― Por que teve tanta certeza de que eu estava pensando em um rapaz novo? Se sabia que meus pensamentos estavam direcionados a um cara, porque não achou que eu estivesse pensando no Silvio?

Célia sorriu de maneira sarcástica e apontou para as pesadas cortinas cor de caramelo que a filha tivera o trabalho de trocar sozinha.

― Porque você nunca fez isso enquanto namorava ele ― respondeu, e antes que Marina pudesse dizer qualquer coisa, emendou: ― E sim, eu sei que vocês terminaram, apesar de você não ter me contado nada.

Célia sumiu de vista deixando a filha se sentindo mal por não ter dito nada sobre o assunto. Não é que quisesse guardar segredos da mãe, mas tinha seu próprio tempo de falar sobre seus problemas ― normalmente quando já fazia algum tempo que eles estavam resolvidos. A questão era que o seu tempo era diferente do das cidades pequenas,  onde os boatos corriam soltos e as pessoas ficavam sabendo de tudo com rapidez. 

Naquela noite, a adolescente adormeceu logo e sonhou com o pai e a casa antiga pintada de azul que na sua memória era apenas um borrão. Ele a rodopiava no jardim e os dois riam muito. Com a cabeça para baixo, dando voltas e mais voltas, vez por outra ela visualizava uma cerca baixa de madeira e a casa vizinha que era parecida com a sua, mas não possuía a mesma alegria. Alguém os observava do outro lado, um par de olhos castanhos bem intensos. Mas ela não se preocupou em descobrir quem era porque estava com ele e era muito divertido.

O sonho mudou. Desta vez Marina estava sentada na escada da frente, olhando para o relógio pela porta aberta. O ponteiro pequeno havia passado do número sete enquanto o grande, passara pelo doze e dera outra volta completa. Quanto mais esperava, mais ela sentia o vazio alojar-se em seu coração.

De alguma forma, a pequena Marina sabia. Ele não ia mais voltar.

― Pai!

Ao abrir os olhos lacrimosos, Marina se deu conta de onde estava, e que apesar de ter parecido real, o momento que desfrutara com o pai não passara de um sonho.

Eu só sonho com você quando estou preocupada com alguma coisa, ou quando algo ruim está para acontecer, disse em pensamento para o pai.

Nesse momento, um rosto quase desconhecido tomou conta da mente ansiosa da adolescente.

Estêvão.

Que mensagem aquele sonho poderia conter?


                                                                                                      ***

Paixão e Rebeldia (Degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora