O Primeiro Livro

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As letras se desprendiam das páginas do livro, saltando sobre as mãos do escritor como se fossem escaravelhos prestes a deturpá-lo. Simas tentava desesperado se livrar dos insetos de papel e tinta que começavam a rasgar-lhe a pele. Por mais que tentasse afastá-las, as letras insistiam em subir-lhe pelos braços, alcançando o colo e o pescoço. Sufocavam-no. Estava certo de que não havia salvação contra o minúsculo alfabeto.

Quando enfim sentiu que morreria, as mãos agarradas violentamente à garganta por onde o ar insistia em não entrar, os olhos se abriram de repente. O teto branco do quarto reluzia enfeitado pelos primeiros raios de sol. Sentiu o coração acelerado, o suor abundante ensopava-lhe os lençóis, sorvia o ar frio tão ferozmente que doíam-lhe os pulmões. As sensações simultâneas geravam uma mescla de pavor e de alívio por perceber que tudo não passou de um pesadelo.

— Bom dia, querido! — Margaret entrou no quarto com uma enorme bandeja de café da manhã. Sobre a madeira escura da bandeja, forrada com um guardanapo de renda francesa, Simas reconheceu a encadernação, com letras prateadas em relevo, que ameaçavam soltar-se da capa a qualquer momento. Margaret avançava para a cama, a fim de entregar-lhe a bandeja com a refeição fresca e com a realização do sonho de sua vida: o livro que escreveu e que foi publicado. Simas quis esquivar-se do volume. O teria feito se não fosse pelo sorriso de Margaret. Talvez ela estivesse mais feliz do que ele próprio com o sucesso do livro. Apesar das críticas positivas que o livro recebeu, Simas não estava convencido de que fizera um bom trabalho. O tema nunca lhe agradou. Ele era, além de professor de história, um estudioso de antigas lendas, mas o fazia por que, no fundo, era um religioso incorrigível. Apesar de sempre se sentir encantado pela mitologia escrever de intenção a teve nunca celta, ficção. Jamais imaginou que acabaria por criar uma história, onde justo um demônio fosse personagem principal, que perseguia e matava pessoas, furtando-lhes as almas, roubando-lhes os sonhos.

Até conhecer Margaret. Ela o encorajou a perseguir o sonho de ser escritor, esquecido desde a adolescência. Agora, beirando os quarenta anos de idade, Simas o concretizou.

— Que cara é essa? Parece que acabou de ver um fantasma! — Margaret tornou a sorrir, beijando-lhe a testa enquanto depositava em seu colo a bandeja com o terrível livro de capa negra.

— É, eu acho que vi mesmo.

— O quê? Andou tendo pesadelos de novo? — Margaret não estava muito preocupada. Simas andava nervoso demais com o lançamento do livro. Nunca gostou de se expor, e sabia que não falava tão bem quanto escrevia. O evento de lançamento seria um sacrifício para ele. Apesar de ter recebido mil provas antes de o texto definitivo ficar pronto e, principalmente, de ter aprovado a capa do livro, ela sabia que ele não estava nem um pouco satisfeito com o resultado.

— Tive, sim. Desta vez foi pior do que as outras.

— Você precisa se acalmar. Hoje é o seu grande dia, esqueceu?

— Você sabe que não estou muito empolgado. Preferia ficar em casa, poderia inventar uma virose, e você me representaria...

— Nem pensar! — interrompeu Margaret, abrindo as cortinas e deixando que a luz daquela pálida manhã de agosto penetrasse os aposentos. A luz do dia ofuscou os olhos de Simas. — Este é o seu livro, é o seu dia, e, afinal de contas, você precisa perder esse medo de gente! Pessoas não mordem, eu lhe garanto!

Simas apenas suspirou.

— Além do mais, sua família inteira está vindo para cá para esta ocasião. Você não vai fazer uma coisa dessas com eles, vai?

Simas ponderou. Se a família se dispôs a percorrer os muitos quilômetros que separavam o sítio onde vivia da capital estadual onde ele morava, a coisa era realmente preocupante.

— Está me chantageando emocionalmente?

— Só um pouquinho — Margaret esboçou um sorriso malicioso. — Farei o que for preciso para te convencer. Pense na coitadinha da tia Cecília... tão velhinha, disposta a viajar horas e horas, só para te prestigiar. Até o Nelson e a Ângela virão e, adivinhe, vão tirar o Maverick que foi do seu tio da garagem!

— Que golpe baixo, Margaret! — O Maverick azul com teto de vinil branco do tio era como uma relíquia da família. Quando menino, o carro era o objeto dos sonhos de Simas e também dos seus primos. O tio, generoso, tinha o hábito de levá-los para passear no carro aos finais de semana. Depois que ele morreu, o Maverick só saía da garagem em ocasiões muito especiais.

— E eu só comecei.

Simas respirou fundo, engolindo em seco. Fixou os olhos no papel negro, e o sonho voltou à sua mente. Receou tocá-lo. Não estava com medo, mas o livro parecia envolto em uma atmosfera sombria, a mesma com a qual ele rodeara seu personagem principal.

— Não vai folheá-lo? É o fruto de anos de trabalho. Não está ao menos curioso?

— Eu? Claro... claro... — estendeu os dedos, ainda receoso. Encostou de leve o indicador no texto prateado do seu nome. Era frio como gelo. Inspirou e esticou a palma, pronto para agarrá-lo de uma só vez, quando o barulho estridente do telefone o interrompeu.

Em um salto, Simas bateu na bandeja, derramando o café quente sobre as cobertas. Margaret apressou-se em retirar a bandeja do seu colo, e saiu correndo para atender ao telefone no andar de baixo.

Simas sentiu-se aliviado, longe do livro. Na verdade, ele não tinha a intenção de tocá-lo. Ao menos não até a noite de lançamento, quando seria impossível esquivar-se das pessoas sedentas por autógrafos. De qualquer forma, o alívio foi imediato quando Margaret postou a bandeja, e também o livro, na pequena mesa redonda, no extremo oposto do quarto, bem longe da cama.

Seu ataque de pânico era infundado, e ele sentia-se ridículo. Mesmo assim partiu para o banheiro na ponta dos pés, como se não quisesse despertar o personagem demoníaco que ele adormeceu para sempre nas páginas finais do romance.

Abriu o chuveiro, sentindo os primeiros respingos gelados tocarem sua pele. Seus pelos se ouriçaram num arrepio agourento e doloroso. Abaixou a cabeça, deixando a água escorrer pela nuca, quando a sensação de frio e calor dos dois misturadores começou a mesclar-se. Logo relaxou e se esqueceu do sonho por alguns minutos. Apertou os olhos, invocando momentos felizes do seu passado, até que o medo o abandonou.

Saiu do banho apressado, o toque inquietante do celular interrompera seus pensamentos. Olhou o número impresso no visor iluminado. Era-lhe conhecido. Lorenzo, o editor, já deveria saber que ele recebeu naquela manhã o primeiro exemplar do seu temeroso romance e com certeza ligou para questioná-lo sobre suas opiniões quanto ao seu trabalho final.

Simas não queria atender. Sabia o quanto o editor custou a conceder algum crédito ao seu trabalho, e o quanto foi arriscado para ele investir em uma história tão extensa, mas não aguentava mais ouvir falar na cerimônia de lançamento, da qual ele faria de tudo para se esquivar. Já sabia que o homem ligava agora para parabenizá-lo: foi ele quem lhe enviou o primeiro volume do livro naquela manhã. Deveria estar curioso para saber o que Simas achara do trabalho final. Simas nunca foi um bom mentiroso, mas não seria gentil se falasse a verdade.

Largou o aparelho sobre o criado mudo, e vestiu-se. Ainda havia muito que resolver, antes do evento marcado para aquela noite. Sanaria as curiosidades de Lorenzo logo na chegada, o que pretendia fazer alguns minutos antes do horário marcado. Desligou o celular, e desceu as escadas para tomar o café da manhã na cozinha. Antes de fechar a porta do quarto, lançou um último e desconfiado olhar para a bandeja de Margaret e para a sua bíblia demoníaca.

O AutorOnde histórias criam vida. Descubra agora