O menino e o tubo de linha

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Gabriel estava entretido. Deitado embaixo da mesa, brincava com alguns dos seus bonecos. Naquele momento, fingia que um grupo de cowboys acabara de invadir uma aldeia de índios e travava uma batalha com eles. Seu corpo franzino, típico de um menino de 5 anos e vestido apenas por uma cueca surrada, remexia-se a medida em que acompanhava o movimento dos seus braços, para lá e para cá, enquanto emitia sons de "pow pow" e "tchuuuum".

Perto dali, Dona Cândida pedalava a sua velha máquina de costuras, empurrando e puxando pedaços de tecidos já cortados, atarantada pelas tantas encomendas que recebera naquele final de ano. Remexendo em sua caixinha de suprimentos, percebeu que uma das cores de suas linhas havia chegado ao fim.

_ Biel, vem aqui com mamãe! - Gritou para o filho, pensando que ele estivesse em outro cômodo.

Gabriel fez-se de surdo, como era o seu costume. Ficou bem quietinho, embora atento, esperando que a mãe desistisse daquele chamado. Fato que não ocorreu.

_ Bieeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeel! - Dona Cândida Gritou ainda mais alto dessa vez.

"Puxa vida, logo agora que o indiozinho iria matar o cowboy" Pensou Gabriel, revirando-se para se levantar e saber o que a mãe queria.

_ A você tava aí, era menino? Por que foi que não me respondeu? - Questionou Dona Cândida, demonstrando um pouco de impaciência, ao ouvir um arrastar de cadeiras atrás dela. - Preciso que você vá lá na bodega de Seu Joaquim e compre dois tubos de linhas brancas para mim - Fez uma pausa, analisando a costura que acabara de terminar, e continuou - Pegue o dinheiro lá na galinha que está em cima da geladeira. - E batendo com mão na coxa para representar a urgência daquela necessidade, gesto já bem conhecido por Gabriel, completou - Ande logo, menino, que ainda tenho que entregar esse vestido hoje.

Gabriel afastou-se resmungando baixinho. Foi até o seu quarto, vestiu um calção velho e colocou a camiseta que estava em cima da sua cama, a mesma que usara para dormir na noite passada. Foi até a cozinha, empurrou a cadeira até perto da geladeira, para que pudesse ter acesso a galinha de madeira onde sua mãe guardava os trocados para o pão, pegou-a e levou-a até a mãe. Dona Cândida retirou uma nota de lá e o entregou. E, a medida em que arrastava os seus pés na direção da porta da frente, pôde ouvir sua mãe gritando:

_ E não vá gastar o troco com besteira, viu menino!

Ganhou a rua e seguiu na direção da bodega do seu Joaquim. Curioso como era, parou para ver a pipa que João acabara de fazer e estava tentando empinar no terreno vazio da esquina. Também parou para perguntar a Dona Zuleica o que ela estava carregando, com todo cuidado, em uma caixa de papelão. E, quando descobriu que eram gatinhos, quis fazer carinho em cada um deles. Depois, ajudou a Dona Odete a pegar o cachorro que havia fugido quando ela abriu o portão para receber uma carta e, por fim, chegou ao seu destino.

_ Seu Joaquim, eu quero dois tubo de linha branca! _ Disse, com toda segurança, apoiado sobre a pontas dos seus pés para alcançar o topo de balcão antigo de madeira, que ficava bem na entrada da loja.

Seu Joaquim abriu um sorriso discreto, abaixo do seu denso bigode grisalho, e, olhando para Gabriel, perguntou: 

_ De qual marca, filho?

"De qual marca? Como assim, minha mãe não falou nada sobre isso!" Pensou Gabriel, enquanto voltava os seus pés para a posição normal e colocava uma das suas mãos na cintura, tentando encontrar uma resposta adequada para aquela pergunta. Pensou, pensou e então, soltou:

_ Das branca, ora!

Seu Joaquim não conseguiu conter o riso diante da argumentação do menino. Foi até o móvel aonde ele guardava as linhas, puxou uma das gavetinhas e pegou três marcas diferentes de linhas que ele tinha na loja. Voltou e as mostrou a Gabriel, explicando:

_ Olha, tenho essas três marcas aqui. Você sabe qual a que sua mãe usa?

"Claro que não!" Pensou Gabriel. Mas, ele sabia que não poderia dar o braço a torcer. Olhou para as linhas, olhou para o Seu Joaquim, olhou para a rua, pensou em voltar até sua casa e perguntar a mãe o que uma era uma marca de linha branca... olhou para as linhas de novo e cruzou os braços diante da incerteza.

_ Essa é a melhor delas e essa é a mais barata - Seu Joaquim, percebendo o constrangimento do menino, tentou ajudar na decisão.

_ Eu quero a branca! - Insistiu Gabriel.

_ Todas são brancas... - Explicou Seu Joaquim.

Gabriel começou a sentir as mãos suarem... por que a mãe lhe dera uma tarefa tão difícil? Ele era pequeno, nem sabia ler as palavras que estavam nas caixas de comida. Como saberia comprar uma linha para ela? Agitou-se sobre as pernas, sentindo que sua barriga estava começando a doer. Olhou para a rua, olhou para Seu Joaquim e pegou um daqueles tubos, sem pensar duas vezes.

_ Quero dois desse!

Seu Joaquim voltou até o armário e pegou um novo tubo de linha para o menino.

_ Pronto! Deixa eu embalar para você. - Disse, estendendo a mão para pegar o tubo de linha que havia ficado na mão de Gabriel.

Gabriel colocou-se novamente sobre as pontas dos pés e abriu a sua mãozinha sobre o balcão, deixando a nota de dinheiro, suada e bem amassada, cair sobre ele.

Seu Joaquim entregou o pacote ao menino, pegou a nota e devolveu-lhe o troco:

_ Obrigado, rapazinho! E volte sempre.

Gabriel agarrou o pacote em umas das mãos, pegou o troco com a outra e saiu vitorioso, rumo a sua casa. Sentia-se um herói, havia acabado de comprar dois tubos de linha sozinho, "e das brancas". Peito estufado, um sorriso enorme estampado em seu rosto, cruzou com Marcelino, seu colega de escola.

_ Biel, você está com cara de bocó! - Comentou o amigo ao passar por ele.

Gabriel não ligou! Seguia triunfante seu caminho para casa, como um general que estivera no comando de um exercito vitorioso e, agora, pronto para receber as suas medalhas. Entrou em casa, foi até a máquina de costura onde Dona Cândida ainda pedalava e deixou o pacotinho cair-lhe sobre o colo, como que dissesse "Consegui! Aqui está o tesouro que você me pediu para conquistar!"

Sua mãe abriu o pacotinho, desembalou um dos tubos de linha e puxou a ponta do fio. Gabriel, ainda parado ao seu lado, continuava a espera do prêmio. 

_ Cadê o troco? - Perguntou a mãe.

Gabriel sorriu e abriu a outra mãozinha sobre o colo da mãe, deixando cair algumas moedas sobre o seu vestido.

_ Certo! Você já está um rapazinho! Agora deixa eu trabalhar que eu tô avexada para entregar essa roupa! - Disse Dona Cândida empurrando o menino, gentilmente, para abrir espaço para o seu trabalho.

O menino olhou para a mãe, olhou para os tubos de linha que acabara de comprar e não acreditou que acabara de ouvir! Ele não era mais um menino, já era um rapazinho. Ele crescera e já era capaz de comprar um tubo de linha sozinho, "e das brancas"... Estufou o peito de alegria e começou a vaguear pelos cômodos da casa. Queria sair correndo dali e contar para todo mundo que ele já era um rapazinho.

Então, viu os seus brinquedos espalhados embaixo da mesa, os indiozinhos em seu acampamento e os cowboys montados em seus cavalos, e pensou "como era bom o meu tempo de criança!". Fixou os olhos nos brinquedos. Naquele momento, sentiu-se mal por ter crescido e não ter aproveitado tudo o que podia. Arrastou os pezinhos na direção da mãe, que continuava entretida com as costuras.

_ Mãe, eu queria poder ser criança de novo! - Resmungou de forma triste.

_ Como assim, Biel? - Dona Cândida virou-se para o menino, com as mãos ocupadas pelos tecidos e uma agulha presa a um dos cantos da sua boca. - Você é criança, meu filho! Deixa a mamãe trabalhar aqui e vá brincar.

"Mãe não mente!" concluiu Gabriel em seus pensamentos, "a não ser quando o homem do leite vem cobrar os atrasados e ela diz que eu fiquei doente e precisou comprar um remédio". Olhou para os seus brinquedos, mais uma vez, e começou a tirar o seu calção. Atirou para longe a sua camiseta, a medida em que enfiava-se, novamente, embaixo da mesa. "Ainda sou criança! Mãe não mente!" e um largo sorriso abriu-se em seu rosto.

_ pow, pow, pow! Tchuuuuummm!

E, finalmente, o indizinho pôde matar o cowboy! 


E quem nunca... Uma série fora de sérieWhere stories live. Discover now