A Marca do Copo

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- E aí, o que você faz?

- Fodo - respondi, olhando para a mesinha ao lado da cama. Já estávamos em silêncio por alguns minutos enquanto eu ficava perdido em pensamentos, olhando para a marca úmida deixada na madeira por algum copo que havia sido colocado ali.
- Não, eu quis dizer com o que você trabalha.
- Sou escritor.
- Sério? Ela riu. A marca formava um círculo quase perfeito, com a exceção de uma pequena falha que já havia secado. A imagem me fez lembrar daquela figura da cobra que come o próprio rabo, símbolo do eterno retorno.
- É.
- E sobre o que você escreve?
- Sobre a existência de forma geral.
- Ah é?
- É.
- Será que vou aparecer em alguma de suas histórias?
- Isso depende.
- Do quê?
- Se você é uma pessoa interessante.
- Deixa quieto então - me virei para ela na cama. O lençol cobria sua cintura mas expunha seus belos seios rosados, que ainda mostravam as marcas de meus dentes. Peguei o baseado no meu porta cigarros, acendi e puxei a fumaça.
- Por que diz isso?
- Minha vida não é interessante.
- Putas são muito interessantes.
- Você acha?
- Você não?
- Minha vida é entediante.
- O que você faria se não fosse puta? - soltei a fumaça, respirando umas duas vezes antes de puxar de novo.
- Quando eu era mais jovem queria ser arquiteta. Mas meu pai disse que eu era bonita demais pra trabalhar.
- Sorte sua - disse prendendo a respiração.
- Sorte?! Vai se foder - a puta parecia ter ficado puta - acha que receber pra dar o cu pra cidade inteira é ter sorte?
- Putas são importantes - eu disse, soltando a fumaça enquanto olhava pro meu pau - quando um lugar não tem putas o número de estupros aumenta. Seu cu deve ter salvo muitas vidas.
- Oh, eu me sinto honrada! - ela disse, com sarcasmo na voz.
- Não se sinta - puxei a fumaça - o mundo é como é - disse e passei o baseado pra ela enquanto segurava. Ela tragou longamente e segurou por um tempo, olhando pro teto. Parecia pensativa. Tragou mais duas vezes antes de me devolver o beck e continuar a falar.
- Não... O mundo podia ser diferente - ela disse enquanto puxei a fumaça.
- Como?
- Não sei... O ser humano podia resolver alguns problemas... Nós com certeza já temos recursos pra isso.
- O ser humano nunca resolve porra nenhuma - eu disse enquanto soltei a fumaça com força - ele só fica correndo de um lado pro outro e nunca chega em lugar nenhum. E depois repete tudo outra vez - olhei novamente para a marca do copo na mesa.
- Como assim? Nós curamos tanta coisa... O câncer, a AIDS... Tudo bem que não tem cura... E você tem que ter um bocado de grana... Mas não gosto nem de imaginar como era em outros tempos.
- Claro que sim - sentei na cama - nós acabamos com a peste e com a varíola, com a pneumonia e a tuberculose, com o câncer, aids e a paralisia infantil. Mas aí nós criamos a depressão, a ansiedade e o estresse, as crises de pânico, os transtornos alimentares, os transtornos de autoestima e a porra do DSM inteiro. E dessas doenças nem os ricos conseguem escapar. Não sem usar uma caralhada de droga. Só que a deles é legalizada e aparece em comerciais de TV.
- O que?
- Antidepressivos e ansiolíticos, minha cara. Um pra acordar, outro pra dormir. Essa porra vicia mais que crack.
- Vanessa.
- O que?
- Meu nome. É Vanessa. E o beck apagou.
- Merda - deitei na cama, peguei o isqueiro e o acendi novamente, puxando.
- Merda? Esse é seu nome?
- Não, esse é o nome do que tem dentro da minha cabeça. Meu nome é David - soltei.
- Prazer.
- De verdade?
- Você quer mesmo saber?
- Eu quero é dormir - traguei profundamente e passei o beck pra ela - essa merda sempre acaba comigo.
- Você ainda tem meia hora.
- Vanessa... Eu tenho todo o tempo do mundo.

As Crônicas da DecadênciaWhere stories live. Discover now