Carta ao leitor!

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          Supondo que você esteja lendo agora estas linhas, como planejei, confiadas a meu advogado, cuja ordem expressa foi de lhas entregar três dias após o meu sepultamento e apenas e tão somente no caso de minha morte ter ocorrido de forma suspeita, você saberá de antemão qual o conteúdo desta missiva.

          A morte da estimada primeira-dama, Rosana Delfina Monteiro Arantes, esposa do excelentíssimo Dr. Godofredo Arantes, prefeito de nossa pequena e pacata cidade, eleito por nós com muito orgulho no último pleito, foi realmente uma tragédia que se abateu sobre todos nós e eu, na condição de delegado de polícia de Sta. Izabel do Rio Pardo, empenhei-me ao máximo na resolução deste caso, como sempre fiz, porém, desta vez, com um empenho extra. Tratava-se de ninguém mais, ninguém menos, que Rosana Arantes, adorada por todos em Sta. Izabel, pessoa de índole indiscutível, preocupada somente com as ações sociais, um grande exemplo para toda a população de nossa cidade.

          O quadro que se apresentou diante de nós, eu, como delegado, e você, que agora lê esta carta, na condição de ajudante na investigação, foi de uma mulher brutalmente assassinada, encontrada no quarto de sua residência, morta sobre a própria cama. Esfaqueada. Dona Rosana Arantes, esfaqueada por alguém que adentrou a casa à noite, enquanto o marido encontrava-se na prefeitura. Esfaqueada por alguém que, antes do delito, discutiu com ela, fato este tendo como testemunha auditiva a governanta, que dormia num dos cômodos da edícula destinada a funcionários. A colaboradora não se levantou, a princípio, imaginando que pudesse ser uma briga entre o prefeito e a esposa, coisa, no entanto, muito rara, pois o casal não era dado a brigas e viviam de forma harmoniosa. Todavia, aquela discussão... Uma rápida discussão! A mulher mal entendera as palavras. Melhor, nada entendera, praticamente só lembrava de ter ouvido a voz da primeira-dama, que logo silenciou. Preocupada, levantou-se e foi até o quarto da empregadora, encontrando-a morta.

          A porta da sala, arrombada. Alguém que provavelmente sabia que o marido não estava em casa e que Rosana encontrava-se sozinha. Alguém que também sabia: na casa, além da primeira-dama, só estava a governanta, já idosa. Nada foi furtado. Por isto, eu e você, investigando o caso, logo, descartamos o latrocínio. Pelo depoimento da funcionária, que mal ouviu a discussão, o assassino tanto poderia ser uma mulher, como um homem. A investigação caminhou e ninguém atinava quem poderia ser essa pessoa e por que ela matara Rosana Arantes. A primeira-dama não tinha inimigos. Era uma pessoa correta, distinta, íntegra. Porém, como era alguém que não tinha uma história de vida na cidade, tendo casado com o prefeito, que a conhecera na capital e trouxera-a para morar em Sta. Izabel do Rio Pardo, ninguém, na verdade, sabia de seu passado. E o que se descobriu é que esse passado possuía, aos olhos de uma cidade com mentalidade reacionária e conservadora como a nossa, uma mancha, um senão. Ela havia sido meretriz, envolvendo-se sexualmente não só com homens, mas também com mulheres. E o prefeito, tendo-se apaixonado por ela, tirara-a daquela vida, propondo-lhe casamento. Assim, pelo pretérito, aos olhos da cidade, pouco nobre de Rosana, pudemos então imaginar alguém muito descontente, algum inimigo do passado, que a encontrara e a matara. Mas, quem poderia ser essa pessoa, perguntamo-nos, eu e você.

          Há quatro dias, enfim, tudo veio à tona. Eu descobri e fiz questão de contar-lhe, pessoalmente, para ver qual seria sua reação. Você, que agora lê esta carta e que me ajudava na investigação... Você, a quem dirijo estas derradeiras palavras... Você, quem diria... Sim, você, visto que morou e trabalhou como policial um bom tempo na capital; que conheceu Rosana; que também foi amante dela. Você, de quem ela cansou-se logo, por causa de seu jeito bruto, de sua ignorância. Você, a quem ela desprezou. Você, que jurou vingança.

          De volta à sua cidade natal, a nossa cidade, Sta. Izabel do Rio Pardo, você aquietou-se, vindo trabalhar comigo, porém, sempre alimentando o desejo de um dia acabar com a vida dela. E o que fez o destino? Trouxe-a para perto de ti. E o que é pior: ela veio casada com o prefeito, inimigo político número um de seu pai. Pronto! O palco da tragédia estava armado.

          Você! Justamente você, que agora lê estas linhas... Tua é a culpa, não só do assassinato de Rosana Arantes, mas também do meu, pois sei: se você agora lê estas linhas, é porque pereci diante de tuas mãos criminosas. Saiba, porém, que teu crime não ficará impune, embora ainda não haja provas concretas. Uma cópia desta já se encontra igualmente nas mãos de nossos superiores. Assim sendo, caro leitor, decretada está a sua prisão, em nome da lei, pelo assassinato de Rosana Arantes e pelo meu próprio assassinato.

                                                                 Assinado: Delegado Rangel.
                                             Delegacia de Polícia de Sta. Izabel do Rio Pardo.

CONTOS POLICIAIS (INUSITADOS)Where stories live. Discover now