Parte I

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1750:

Do lado de fora, crianças corriam pela praça central com seus corpos seminus. Usando apenas um pequeno pedaço de tecido para cobrir seus sexos, elas se divertiam alheias ao que ocorria dentro da casa dos padres jesuítas. O restante dos guaranis – mesmo os adultos – também estava sem saber sobre a situação. Era mais um dia comum na Missão de São Miguel. Alguns homens haviam saído para caçar e pescar, enquanto a maioria permanecia nas pequenas áreas de plantio coletivas. As mulheres cuidavam das casas e produziam roupas, enquanto as moças tomavam conta das crianças pequenas.

Para eles o único acontecimento anormal daquela tarde era a volta do Padre Lourenço Balda, o Cura daquela redução. Mas para os outros padres era o início das preocupações e o fim do período de prosperidade e paz.

— Portugal e Espanha assinaram o Tratado de Madri — Pe. Balda fez questão de anunciar assim que se encontrou com seus colegas da Companhia de Jesus. Trazia junto de si um grande mapa enrolado, com os novos limites das terras. — A Colônia de Sacramento passou a ser da Espanha, e o território de algumas missões são de Portugal.

— De algumas missões? — Pe. Miguel de Soto, o auxiliar do Pe. Balda o encarou.

— Sim. A de São Miguel está incluída nessa. Assim como a Missão de São Borja, Santo Ângelo, São Luiz, São Lourenço e todas as que ficam desse lado do Rio Uruguai.

— E o que isso acarretará para nós?

— Ainda é cedo para dizer alguma coisa. Pode ser que D. José I mantenha as Missões. Vamos aguardar e esperar uma posição da Companhia.

— O Rei nomeou como seu Primeiro-Ministro o Marquês de Pombal e sabemos o quanto o desagrada a Companhia.

— Eu sei. Mas por hora não faremos nada. Apenas continuaremos nossas tarefas e manteremos a Missão como sempre fizemos. Os índios não devem saber de nada.

— Nem mesmo Sepé?

— Por enquanto não. Joseph é o corregedor, mas não há nada que possa fazer. Vamos aguardar maiores informações.


1752:

Mais uma vez, Padre Lourenço Balda volta para a Missão de São Miguel com notícias nada boas. Passara-se dois anos desde que o Tratado de Madri fora assinado e, enfim, as grandes potências mundiais – Portugal e Espanha – queriam que ele fosse cumprido.

Balda adentrou a cidade jesuítica e percorreu a praça central com a tristeza apertando seu peito. Nem mesmo a recepção acalorada dos índios, os abraços e sorrisos das crianças foi capaz de fazer o homem sentir-se melhor. Muito pelo contrário. Ver aqueles humanos e toda a sua ingenuidade, todo o trabalho que tiveram para livrá-los da heresia e trazê-los para o amor de Cristo só o fazia se sentir ainda pior.

Como poderiam enxotar todos aqueles índios em tão pouco tempo? Abandonar tudo que construíram em tantos anos? Abandonar a Igreja que nem haviam terminado de construir? Abandonar as casas relativamente confortáveis feitas de barro e telhas? Abandonar as plantações, o gado? Abandonar toda a infraestrutura que ali tinham e recomeçar?

Quantos anos seriam necessários para que possuíssem uma sociedade como aquela? Quantos dos guaranis não se perderiam pelo caminho até o outro lado do Rio Uruguai, quantos deles não morreriam, e quantos não abandonariam a fé?

Ficou um longo tempo na Igreja, ajoelhado no chão e deixando que seu Deus misericordioso ouvisse suas preces. Fizera voto de obediência e servidão, mas não conseguia cumprir ordens tão irracionais. Largar tudo que construíram por decisões de monarcas que nem ao menos conheciam os índios e a harmonia em que viviam era uma grande insensatez!

Essa terra tem dono, zumbis!Where stories live. Discover now