Em terras estranhas

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- É tudo mentira daquele guarda, porque eles estão se intrometendo na minha vida. Talvez eu devesse fazer uma visita na casa dele e mostrar quem é que manda e fazer ele se afastar.

Jeremias vagava sem rumo. Conseguiu afastar os pensamentos de culpa jogando-os para cima da própria Helena. Dizia que a culpa era dela por ser uma cabeça fraca e ter tirado a própria vida.

- Com licença, você está perdido?

- Que te interessa? – Jeremias foi pego de surpresa e acabou respondendo mais áspero do que precisava.

- Eu ajudo os espíritos perdidos que não sabem ainda de sua condição, desculpe se o incomodei.

O espírito que lhe falava era uma mulher linda e Jeremias logo se ajeitou.

- Desculpe, senhorita, estava perdido em meus pensamentos e acabei sendo grosso com você.

- Tudo bem. E então, precisa de ajuda?

- Não. Eu estou bem, sei que morri e que a vida continua e tudo mais.

- E sabe que há lugares melhores para se estar do que aqui, que toda essa raiva que você carrega pelo seu desencarne só atrasa seu crescimento?

- E o que você sabe sobre mim?

- Na verdade sei tudo, entre nós espíritos desencarnados não há mentiras ou inverdades. Pude ver sua última vida do início ao fim e toda essa dor que você carrega lá no fundo.

- Você é bem saidinha pro meu gosto. Quem lhe deu o direito de sair fuxicando a vida dos outros? Acho que já terminamos.

Jeremias, que antes ao ver o belo rosto se conteve, agora, depois de ouvir o que não queria, a empurrou e saiu em disparada tentando se afastar. As palavras delas foram poucas, porém fortes. Ela sabia exatamente o que se passava no fundo do coração dele, a angústia, sofrimento e arrependimento que ele escondia de todas as formas. Ele transformava tudo em raiva e descontava em Carlos, que, no corpo, não sabia como se defender.

- Você não pode fugir de mim. Tenho outras tarefas a cumprir, mas lhe farei outras visitas. Aconselho a mudar seus pensamentos e deixar aquele rapaz em paz. Você está há tanto tempo ao lado dele que nem mesmo parou para olhar para si mesmo. – Ela sumiu e Jeremias ficou lá parado, pensando no que ela disse por alguns instantes, e voltou a vagar sem rumo.

- Esse pessoal acha que sabe da vida dos outros. Que se dane, vou continuar a me vingar daquele maldito até ele morrer.

Jeremias lembrou de Helena. Seu pensamento foi tão forte e as lembranças vieram com tanta força que ele foi transportado para onde ela estava. Ele não via, mas o espírito que recém o falava estava ao seu lado invisível para ele acompanhando tudo que ele fazia.

- Helena, minha nossa!

Por um instante, Helena saiu de seu transe. Ela sentiu a presença de alguém e olhou para trás. De um pulo, Jeremias se escondeu e vagarosamente ela voltou para seu estado sonâmbulo.

- Meu Deus, que lugar é esse, e por que Helena está desse jeito? Ela que foi sempre bonita e esperta. Parece até um zumbi, e o que é aquilo escorrendo de seus pulsos? Preciso sair daqui.

Jeremias correu na direção contrária e, por mais longe que fosse, aquele lugar nunca acabava. Seu terreno lamacento e fétido continuava num infinito. Ele encontrou outras pessoas em estados parecidos com o de Helena. tentou aborda-los, mas começou a ser agarrado, eles o chamavam de assassino, ele rolou pela lama se esquivando e nadou por um rio que mais parecia uma fossa.

- Meu Deus alguém me ajude, me tirem daqui pelo amor.

Ela não se fez visível, mas lhe falou em pensamento.

- Você é responsável pelas suas escolhas e elas às vezes agem direta ou indiretamente na vida de outras pessoas. Você está o que você vive.

- Não entendo, o que quer dizer?

- Quer dizer, Jeremias, que desde que estava encarnado você já estava no umbral de suas escolhas: adultério, chantagem. Poucos eram os pensamentos bons que você tinha enquanto na carne.

- Mas eu morri.

- E a vida continua, não é mesmo? E somos aqui como fomos lá, sem tirar nem pôr. Nosso corpo físico foi embora, mas nossa individualidade continua intacta, ou você acha que a morte era o fim e que Deus criou tudo isso sem um motivo?

- E onde estou? Como saio daqui?

- Mudando seus pensamentos e atitudes. O umbral é o lugar por onde os espíritos que ainda precisam passam para relembrar o que importa, para tirar todo peso que está em seus ombros, para se arrepender de seus atos e muitas outras coisas, Jeremias.

- Você está dizendo que eu sou culpado e que mereço isso? Eu fui morto! E Helena, bem, ela se matou sozinha, eu nem toquei nela.

- Basicamente há duas formas de aprender, Jeremias: pelo amor e pela dor. Aqueles que não conseguem aprender pelo amor que lhe é oferecido, acabam aprendendo pela dor. Por mais que pareça injusta, é a pura misericórdia de Deus para com seus filhos que ainda trilham o caminho das escolhas erradas.

- Aqueles caras lá atrás estão piores do que eu e ainda assim me chama de assassino. Eu não sou nada disso, eu sou a vítima aqui.

- Será mesmo? Eu não posso te ajudar agora, Jeremias. Foi-lhe dada uma oportunidade, foi dado amor e você escolheu a dor. Desejo do fundo do coração que você se ache novamente. Sei que você pode reencontrar o amor dentro de si.

- Não vá embora! Apareça, volta aqui, sua maldita! Fala todas essas besteiras e depois foge. Que se dane, vou sair daqui do meu jeito.

Jeremias andou e andou por vários e longos dias. Não sabia se era noite ou dia. Sentia fome e frio. Conseguiu alguns machucados ao longo do caminho e teve que começar a andar com um galho improvisado de muleta. Sua aparência a cada dia parecia mais como a de um morador do umbral, e se olhasse seu reflexo não se reconheceria. Brigou e ficou amigo de outros espíritos com pensamento em comum ali no umbral e, apesar do cansaço que sentia por tudo aquilo, não amolecia seu coração.

- Você acha que ele vai se abrir para alguém?

- Me diga você, Lucas, quando você passou por aqui o que lhe trouxe de volta à razão?

- Aqueles foram tempos difíceis, Raquel. Passei muitas vezes por aqui e já havia desistido, mas Deus é bom demais para com seus filhos para deixar uma ovelha desgarrada. Eu aprendi que sozinhos não somos ninguém, e que às vezes precisamos esticar a mão não só para ajudar, mas também para receber ajuda. Acredito que quando ele deixar o orgulho de lado e entender que a humildade abre portas as coisas irão mudar.

Eles continuaram conversando enquanto Jeremias procurava algum lugar para se abrigar. O machucado na perna não sarava e começava a escurecer a parte onde sofrera o corte. Ele tentava da melhor forma limpar a ferida, mas desde que chegou ali a única água que considerou limpa era a da chuva que às vezes lavava todo o umbral. Ele enrolou de novo o pano e apertou o máximo que pôde a ferida, que voltou a sangrar. A dor foi tão forte que ele bambeou e caiu desacordado de cara no chão. 

As escolhas de cada umDonde viven las historias. Descúbrelo ahora