iii. os tributos

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S I R E N A

É A PRIMEIRA VEZ QUE ENTRO EM UM TREM. Ainda estou me sentindo estranha após todos os flashes de câmeras que me cegaram na estação antes de embarcarmos, mas a água morna do chuveiro me ajuda a relaxar um pouco. Ou o mais próximo de relaxar que posso chegar em um trem que provavelmente está me levando para minha morte.

Está sendo um dia cansativo. Cada um de nós tem suas próprias acomodações, com quarto, banheiro e até vestíbulo, e é tudo tão luxuoso que por um segundo sinto receio de tocar qualquer coisa. Então a primeira coisa que faço é tomar um banho o mais demorado possível, desejando assim poder adiar o que está por vir. Ali, me permito chorar o que ainda não pude. O alívio é imediato, e sinto que sou capaz de me manter equilibrada por mais algumas horas. Saio para me vestir.

Encontro pilhas de roupas dobradas de mais cores e modelos do que eu seria capaz de imaginar a meu dispor. Maelana me disse que minha única obrigação é estar pronta para o jantar, mas que posso vestir e fazer o que desejar até o horário, então não me preocupo com o tempo e enrolo o máximo que posso. Visto uma blusa azul marinho que parece ligeiramente maior do que o tamanho apropriado para mim e calças pretas antes de me jogar na cama de qualquer jeito. Fecho os olhos e tento, em vão, dormir um pouco, quem sabe acordar e perceber que tudo não passou de um pesadelo; mas o sono, é claro, não vem.

Maelana me chama para jantar muito antes que eu perceba, e eu a sigo até o vagão restaurante em silêncio, o que parece deixá-la desconfortável. Eu não poderia me importar menos. Como as outras acompanhantes da Capital, ela é empolgada demais para o meu agrado.

A riqueza do ambiente é evidente. Os móveis são de algum tipo de madeira cara que não consigo identificar, os talheres sobre a mesa reluzem de forma exagerada e até os lustres sobre nossas cabeças são enormes e cheios de ornamentos dourados que suspeito serem de ouro.

Todo esse luxo, e depois seremos jogados em uma arena para matarmos uns aos outros.

Finnick Odair é a única pessoa sentada à mesa; não vejo Aris Mitchell nem Ciana Pozzi — que deveria ser a outra mentora do ano — em lugar algum.

— Sente-se, querida — sou encorajada por Maelana, que gesticula na direção da mesa. — Ciana e Aris já devem estar chegando.

Muito autoconsciente, eu obedeço. Há um momento estranho em que faço contato visual com Finnick, mas desvio o olhar o mais rápido que posso, concentrando-me no prato vazio a minha frente, tentando imaginar qualquer coisa que me distraia. Tenho a sensação de ter visto um pequeno sorriso de divertimento no rosto dele. Será que ele se lembra de mim? Quando acabo por olhá-lo de novo, ele pisca. Droga. Eu me sinto idiota. Finnick tem o tipo irritante de beleza que deixa as pessoas desconfortáveis, e ele sabe disso. Estou sentada tão ereta que meu pescoço dói, mas não consigo parar.

Aris e Ciana logo aparecem e se sentam um de cada lado da mesa, de forma que ficamos divididos entre mentores e tributos, com Maelana sentada na ponta. Tenho a impressão de que Aris sorri para mim antes de se sentar, mas se o fez foi um sorriso tão pequeno e breve que não consigo ter certeza o suficiente para retribuir. O que há com todo mundo e esses sorrisos? Não consigo imaginar como ele consegue sorrir nessa situação. Sua tranquilidade é mais intimidante do que posso admitir.

— Então — Ciana abre espaço para uma conversa enquanto a comida não vem. Ela é uma carreirista. Eu assisti aos jogos dela três anos atrás. Tinha dezoito anos quando se voluntariou, e venceu do modo tradicional: aliança com os carreiristas do 1 e do 2, depois foi esperta o suficiente para matá-los antes que a matassem. Seus olhos castanhos se voltam para Finnick e então para nós. — Quem vai mentorear quem?

Finnick não diz nada a princípio, mas sinto seu olhar sobre mim por um breve momento, como se considerando as opções. Ao meu lado, Aris dá de ombros.

— Você pode escolher — sugere Finnick despreocupadamente. Os olhos de Ciana brilham de satisfação. Estou na presença dela há apenas alguns minutos, mas já sei que ela é muito mais competitiva do que um mentor comum deve ser; ela não quer nos tirar vivos da arena. Só quer ter certeza de escolher um vencedor.

— Eu fico com Aris — ela diz. Soa como se estivesse dando um lance em um leilão, e eu não sou o prêmio que ela quer levar. — Do que eu estou falando? É claro que você vai ficar com a garota.

Ciana foi o primeiro tributo que Finnick mentoreou e, como normalmente a cada ano uma dupla diferente de mentores costuma ficar responsável pelos tributos, também foi a única até agora. Imagino que as garotas antes de mim, deslumbradas demais, sempre esperavam trabalhar com ele.

Finnick solta uma risadinha baixa, e eu fico irritada porque até sua risada é atraente. Não falamos mais, mesmo depois que a refeição chega; a comida vem em etapas e são tantos pratos diferentes, tão diferentes dos frutos do mar que estou acostumada a comer, que termino a refeição tão cheia que sinto que posso explodir, mesmo que tenha experimentado apenas uma pequena porção de cada coisa. Me sinto muito infeliz por não ter deixado espaço para a sobremesa quando um avox traz uma tigela lindamente decorada de morangos com chocolate derretido e algum tipo de creme que desconheço.

Depois de comermos, Maelana sugere que assistamos à reprise das colheitas, de forma que todos nós nos sentamos diante de um projetor enorme. Finnick senta-se despreocupadamente à minha direita, e o desconforto me perturba outra vez. Sinto que ele me olha, mas é bem possível que seja apenas uma sensação. Aquilo que ele me disse a tantos anos atrás fica reverberando na minha mente. Seja corajosa. Tento me concentrar na tela.

Apesar de não sentir a menor vontade de me ver naquele palco novamente, não posso negar que estou curiosa para saber quem serão meus adversários na arena, embora mesmo antes de assistir eu já saiba que meu maior problema será os distritos um e dois. Ao meu lado, sobre o sofá, minha mão treme.

E minha hipótese se prova correta. A dupla do um parece bastante ruim, mas a do dois é imbatível. A garota se chama Petra e o garoto, Nolan. Os dois são voluntários. Nolan é alto, talvez ainda mais alto que Aris, e com certeza mais corpulento. Petra é pequena e magra, mas musculosa, e tem olhos inteligentes. Meu primeiro pensamento é que ela deve ser muito rápida. Os dois são todos sorrisos para o público e um para o outro.

Assisto o restante das colheitas, inclusive a minha, mas os outros tributos não me parecem tão preocupantes. Há um garoto do 7 que parece bem forte, e uma menina do 9 tem uma expressão dura no rosto quando seu nome é chamado, mas o restante são só crianças ou adolescentes aparentemente sem preparação nenhuma. Um garoto do 8, que deve ter não mais do que uns doze anos, chora.

Mesmo depois que tudo acaba eu ainda continuo olhando para a tela, imaginando como vou matar todas aquelas pessoas.

Eles são tubarões, ouço a voz do meu pai em minha mente.

Eu sei o que nós fazemos aos tubarões.

Nós os matamos antes que eles nos matem.

À Deriva | f. odairOnde histórias criam vida. Descubra agora