One-shot 4

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Novembro se iniciava com temperaturas baixas em Nova York, por mais que não houvesse neve. O sol fraco entrava por sobre a janela do quarto onde Lucinha estava hospedada. Ela gostaria de deitar um pouco para descansar, mas o espetáculo ocorreria à noite e elas ainda não haviam passado o som.

De volta ao Hall do hotel, Lucinha encontrou Tânia, Virginia e o restante da equipe, hospedados no mesmo local, e juntos, todos se encaminharam para o teatro.

Perto das sete da noite, faltando quarenta minutos para subirem ao palco, as três estrelas do espetáculo deram as mãos no camarim e fizeram uma oração, se abraçaram e deram um grito em uníssono:

-MERDA! – Lucinha deu uma gargalhada, e Virgínia perguntou:

-Como eles falam aqui mesmo?

-Quebre a perna. – respondeu Tânia.

-Então... – puxou Virgínia – Quebre a perna! – As três disseram e riram. Estavam nervosas, mas mais nervosa era Lucinha.

Um turbilhão de emoções corria dentro dela. Ansiedade, medo, expectativa. E tudo isso não se limitava à peça. Há um mês ela havia estado naquela cidade, havia se hospedado naquele mesmo hotel, e havia conhecido Meryl Streep pessoalmente.

Há um mês, nada do que havia acontecido saía de sua cabeça. Ela ainda podia sentir as mesmas sensações que sentira junto de Meryl ao fechar os olhos, ou dar uma tragada no cigarro. Uma taça de vinho a fazia se lembrar da atriz de Hollywood, e mais do que isso, da mulher simples e intensa com quem partilhara um momento único na vida.

Lucinha não tinha o contato de Meryl, e não sabia se a veria desta vez. Esperava que sim, esperava que ela aparecesse no espetáculo, esperava pelo menos trocar duas palavras com ela, quem sabe mais, se fosse possível... Sabia que a situação toda era delicada, que, há um mês atrás, Meryl estava passando por um momento delicado com o marido, e Lucinha era madura e lúcida o bastante para não criar fantasias em sua cabeça. O que não a impedia de cogitar a possibilidade.

O primeiro sinal antes de a peça iniciar tocou, e Lucinha sentiu as pernas bambearem. Daria tudo por um cigarro, mas elas precisavam ir para o palco. As três, com as plumas esvoaçantes, os vestidos brilhantes, subiram pela escada estreita que dava para a coxia. Nessa altura o segundo toque já havia sido dado.

O terceiro e último toque foi dado e a música rompeu no palco. As cortinas foram abertas, e elas entraram.

As luzes eram escuras, o palco grande, o cabaré formado. Elas cantaram uma, duas, seis músicas. Lucinha deixou o palco, Tânia e Virgínia deram seu show. Lucinha voltou.

A plateia, antes na escuridão, agora tinha uma luz fraca, para Lucinha conversar um pouco com o público. Ela falava, em seu inglês com sotaque, com o sorriso encantador, a beleza estonteante:

-Vocês não têm ideia da nossa felicidade em estar aqui, cantando para vocês! Tem que ter amor, pois deixamos um calor de 40 graus para nos depararmos com uma temperatura negativa, vejam só!

Todos riram.

-Brincadeiras à parte, é realmente uma honra estar aqui.

Lucinha continuou, fazendo brincadeiras, passando os olhos pelas poltronas, e então, ela avistou alguém, e seu coração parou.

Meryl estava sentada na plateia. Sorria para ela, não só com os lábios, mas também com os olhos, que brilhavam.

Momentaneamente Lucinha perdeu a fala.

O sorriso se abriu largo em seus lábios, e ela passou a mão pelos cabelos. Conseguiu retomar a fala, e apresentou:

-Senhoras e senhores, nos teclados, acordeom, arranjos, regência – ela apontou para o músico – maestro Ogair Junior.... – As primeiras notas foram dadas, e ela sentou-se para cantar:

Quero ficar no teu corpo

Feito tatuagem

Que é pra te dar coragem

Pra seguir viagem

Quando a noite vem...

Seus olhos fitavam a meia luz e iam diretamente ao encontro dos olhos de Meryl. Ambas sabiam para quem Lucinha estava cantando aquela música. O coração de Lucinha arrebentava no peito, sua voz dava acento a cada nota, e os gestos sensuais, os cabelos caindo ao longo das costas, o corpo moldado no vestido preto, tudo, fazia dela uma deusa da luxuria.

Com o coração trabalhando apressado, Meryl assistia a performance que estava sendo feita para ela, sem demostrar na expressão serena tudo o que se passava dentro dela. Don, com o braço entrelaçado no dela, assistia maravilhado.

Quero ser a cicatriz

Risonha e corrosiva

Marcada a frio, a ferro, a fogo

Em carne viva...

Corações de mãe, arpões

Sereias e serpentes

Que te rabiscam

O corpo todo

Mas não sentes...

Lucinha abaixou a cabeça gradativamente, à medida que as notas do teclado encaminhavam a canção para o seu fim.

Ela deixou o palco trêmula. Tânia entrou, depois Virgínia. Depois, Lucinha. Dessa vez, ao olhar na direção de Meryl, ela notou os braços entrelaçados e percebeu que ela estava acompanhada do marido.

As três cantaram Fora de Hora, de maneira muito tocante, e deram continuidade ao show com músicas mais fortes e animadas, finalizando com Samba do Grande Amor, para delírio da plateia.

Todos do palco fizeram reverência e aplaudiram o público, retirando-se do recinto ao fechar das cortinas. Lucinha correu apressada em direção ao camarim.

Ao descer o lance de escadas, várias pessoas esperavam para cumprimentá-la, bem como aos demais. Havia coquetel e champanhe. Havia uma infinidade de pessoas com as quais Lucinha tirou foto e abraçou.

No entanto, não havia Meryl. E não houve sinal dela no restante da noite, nem quando Lucinha deixou o teatro, finalmente tragando um cigarro que não dava conta de acalmar-lhe os nervos.

AcasoWhere stories live. Discover now