CAPÍTULO 1

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Sentados frente a frente em uma confeitaria elegante, olhavam-se
com disfarçada curiosidade. José Luiz estava muito emocionado. O rosto corado
e expressivo da moça lembrava muito o de Suzane, e ele sentia aumentar
as saudades.
— Disse que conheceu minha mãe...
— Sim. Conheci muito e vendo-a tão parecida com ela, sinto-me emocionado.
— Por quê?
— Como se chama? — indagou interessado.
— Luciana.
— Meu nome é José Luiz. Sua mãe nunca o mencionou?
— Não — respondeu ela, pensativa.
— Compreendo. Por certo seu marido não compreenderia. Nós
fomos namorados.
— Mamãe nunca se casou. José Luiz sentiu um baque no coração. Uma súbita
suspeita começou a despertar dentro dele. Precisava saber mais, queria saber
tudo.
Emocionado, colocou a mão sobre a dela apertando-a com força quando disse:
— Luciana, por favor, preciso saber tudo. É importante que me conte sua vida,
onde andaram todos esses anos.
— Por quê? — inquiriu ela sentindo-se também envolvida por grande emoção.
Pressentia que finalmente ia conhecer o drama de sua mãe. Seu passado, sua
origem.
— É preciso. Há quase vinte e cinco anos eu procuro Suzane desesperadamente.
Só hoje, descobri que está morta há dez anos. Se ela não se casou... isto é...
você...
— Não sei o que dizer... talvez o senhor possa esclarecer-me. Ela nunca me falou
sobre o passado. Meus avós diziam-me que não fizesse perguntas, que ela havia
sofrido muito e precisava esquecer.
— Quantos anos tem? — inquiriu ele, trêmulo.
— Vinte e quatro — disse ela de sopro. — Por favor, se sabe de alguma coisa,
conte-me.
Sem poder conter-se mais, José Luiz disse-lhe com certa euforia:
— É cedo para dizer, porém, tudo leva a crer... que você seja...
— Que eu seja? — encorajou ela, vendo-o hesitar.
— Minha filha! — concluiu ele apertando suas mãos com
Ficaram calados alguns minutos, olhando-se sem coragem de falar.
Depois, quando serenou, ela disse:
— Deve ter boas razões para pensar assim. Por favor, conte-me tudo.
Depois, direi o que sei.
— Muito bem — concordou ele, fazendo uma pausa, esperando que o garçom
dispusesse as iguarias sobre a mesa e lhes servisse o chá.
Olhando o rosto emocionado de José Luiz, ela considerou:
— Vamos tomar o chá. Ambos precisamos de um. Quero saber tudo,
com detalhes.
José Luiz sorveu alguns goles de chá e procurou acalmar-se. Depois, sentindo-se
mais encorajado, contou tudo sobre seu amor com Suzane. Não omitiu nenhum
detalhe. Ao contrário, foi duro consigo mesmo, como que penitenciando-se junto
da filha, já que não podia fazê-lo diante de Suzane.
Ela ouviu, sentindo as lágrimas rolarem pelas faces, pensando no sofrimento de
sua mãe.
— Estou arrependido — terminou ele — queria pedir-lhe perdão. Dizer que me
enganei. Que se fosse hoje, eu não a teria perdido. Mas, agora é tarde!
Ela partiu para sempre!
— Engana-se — respondeu Luciana. — Seu corpo morreu, mas seu espírito
continua vivo e ao meu lado. Sinto-a junto a mim. Vejo-a de vez em quando.
José Luiz olhou-a admirado. Luciana tinha alucinações.
— É verdade. A morte não é o fim de tudo. Nós somos eternos! Não acredita
nisso?
— Não. Sinto desiludi-la. Se isso a conforta, posso compreender. Mas, quem
morre, jamais volta. Nunca mais voltaremos a nos ver.
Luciana olhou-o com tristeza.
— Sinto que ainda não tenha descoberto esta verdade. É triste pensar no “nunca
mais”.
— Isso tem me crucificado. Mas, não tem remédio. Agora, conte-me tudo que
sabe. Sua idade desperta em mim uma suspeita, ela não se casou... pode ser
que... Conte-me tudo.
Luciana concordou com a cabeça e começou:
— Nasci no Brasil no dia 4 de julho de 1892, mas fui criada em Londres, onde
vivemos durante oito anos. Em casa, meus avós nunca mencionavam meu pai e,
quando perguntava por ele, minha mãe dizia que ele havia morrido antes de eu
nascer e que eles nunca tinham se casado. Porém, ela sofria tanto quando eu
perguntava, que minha avó repreendia-me dizendo que evitasse o assunto. Que
minha mãe guardava grande mágoa no coração. Que eu precisava dar-lhe muito
amor para ajudá-la a superar essa dor. Fiz o que pude.
Aliás, era fácil gostar de mamãe. Ela era encantadora, amorosa, amiga
e bondosa. Desvelava-se por mim abnegadamente, e eu a amava muito.
Meu avô morreu em 1899, e vovó ficou muito abalada com essa perda.
Nossa situação financeira não era boa, e minha mãe trabalhava muito para
ajudar nas despesas. Foi quando ela decidiu voltar ao Brasil. Vovó havia deixado
pequena casa em São Paulo, da qual não recebia dinheiro algum por estar
emprestada a uma amiga. Escrevemos a ela e fomos para S. Paulo. A casa era
pequena e quando a amiga de vovó se mudou, pudemos nos instalar.
Nela, mamãe procurou trabalhar, o que era difícil, apesar do progresso e
das novas oportunidades que a mudança do século trouxera. Ela dava aulas
de inglês aos filhos de famílias ricas e, naqueles tempos, o francês estava
mais em evidência. Apesar de conhecer esse idioma, não sabia o suficiente
para ensinar. Conseguiu alguns alunos e assim pudemos ir vivendo com dificuldade.
José Luiz disse como para si mesmo:
— Suzane nunca me disse que estava grávida! Eu jamais soube!
— Acredito. É próprio do seu caráter. Um dia, apareceu em casa muito nervosa.
Disse que precisávamos partir. Que havia uma pessoa interessada em descobrir
nosso paradeiro. Vovó tentou dissuadi-la. Afinal a casa era nossa segurança. Mas
ela não cedeu. Assim, vendemos a casa e viajamos para cá.
— Que ano foi?
— Fins de 1900 ou começo de 1901, não me lembro bem. O dinheiro da casa foi
gasto quase todo, enquanto ela procurava emprego e pagávamos um aluguel no
subúrbio. Ela adoeceu gravemente, e nós passamos por muitas dificuldades.
Minha avó possuía jóias que foram vendidas para tentar salvá-la.
Foi inútil. Depois que ela morreu, eu e vovó ficamos muito tristes.
Mamãe, apesar de todas as suas lutas, sempre nos animava a prosseguir. Era
alegre e jamais esmorecia.
Sem ela, sentimo-nos abaladas e sem rumo. Vovó queria voltar para Inglaterra,
porém, não tínhamos recursos para a viagem. Depois, eu preferia ficar no Brasil.
Era minha terra e eu sentia que aqui era nosso lugar.
Luciana parou, olhos perdidos em um ponto indefinido, imersa nas recordações.
Depois de alguns instantes, continuou:
— Mas, nós tínhamos que viver. O dinheiro acabou. Vovó era velha demais para
trabalhar, e eu procurei sem sucesso uma colocação qualquer que nos permitisse
sobreviver. Uma noite em que estava desesperada, sonhei com minha mãe. Ela
estava na cozinha com vovó e dizia com voz firme:
— Suas conservas são deliciosas. Todos gostam. Eu tenho saudade delas. São
maravilhosas. Vovó sorria contente. E quando, no dia seguinte, contei-lhe o sonho,
ela animou-se dizendo:
— As conservas! Vou fazer para vender. Não acha uma boa idéia? E assim,
começamos a trabalhar. Eu ajudava, e fazíamos doces, legumes, tudo que ela
sabia e vendíamos para os vizinhos, amigos, conhecidos. Aos poucos fomos ficando conhecidas, e nossos produtos eram muito procurados. Graças a isso, pude terminar meus estudos.
Luciana fez uma pausa, olhos perdidos, mergulhada em suas recordações.
José Luiz olhou-a comovido.
— Vocês não precisavam ter passado tudo isso. Apesar do que fiz, eu jamais
deixaria de ajudar se houvesse conhecido a verdade.
Luciana levantou o olhar encarando-o.
— Não lamente. O que mamãe fez está certo. Já que o senhor escolheu um outro
caminho, ela afastou-se e procurou resolver sozinha seus problemas.
— Vocês sofreram sem necessidade.
— Não diga isso. Nossas lutas foram boas e nos deram experiência.
Apesar das dificuldades, conseguimos viver muito bem.
José Luiz olhou-a comovido.
— Não tenho dúvida de que você é minha filha. A coincidência de datas não
permite que ela tenha tido outro romance depois do nosso. Dá para perceber que,
quando nos separamos, ela já estava esperando você.
Luciana sorriu:
— Se lhe agrada saber, ela jamais teve outro namorado. Vovó não
se conformava, vendo-a jovem, bonita, alegre, muito cortejada apesar de
não encorajar ninguém, sem querer aceitar nenhum admirador.
José Luiz sentiu uma onda de emoção:
— Apesar de tudo, eu também nunca, a esqueci. Jamais deixei de prezurá-la e,
se ela não tivesse se mudado de S. Paulo, eu a teria achado.
Luciana suspirou pensativa.
— Isso não teria mudado nada — ela jamais aceitaria um relacionamento dessa natureza.
— Não sei. Nosso amor era muito grande e puro, só entendi isso muitos anos depois.
— Seja como for, agora tudo mudou.
José Luiz concordou com a cabeça.
— É verdade. Nada mais posso fazer senão conformar-me.
Seu rosto refletia tristeza e desânimo. Continuou pensativo:
— Agora, a vida vai perder todo seu encanto. Antes, eu alimentava a esperança
de rever Suzane, sonhava com o reencontro, com as coisas que lhe diria para
provar o meu arrependimento. Contava refazer nossas vidas, Infelizmente, tudo
acabou.
Luciana olhou-o séria:
— Não deve alimentar tristeza nem pessimismo. A escolha foi sua. A
vida sempre coloca em nossa frente várias opções. A escolha é livre, mas uma
vez feita a opção, cessa nossa liberdade e somos forçados a recolher
as conseqüências.
José Luiz olhou-a admirado.
— Gostaria que fosse diferente — disse.
— Se houvesse se casado com minha mãe, talvez guardasse para sempre a ilusão
de que o outro caminho seria melhor. Talvez se arrependesse.
— Você se engana. Se eu a houvesse desposado, teria encontrado a felicidade.
— Será? Acredito que ela saberia fazê-lo feliz, mas seu coração teria se privado
de coisas que valorizava, isso não o teria tornado infeliz? Apesar de ter o amor
dela, isso, naquele tempo não lhe bastava.
José Luiz sentiu que era verdade. Se houvesse casado com Suzane, por mais
felizes que tivessem sido, ele sempre guardaria certa insatisfação, sua ambição
não o teria deixado ser completamente feliz.
Olhou o rostinho corado da filha, aparentando ser mais jovem do que era e
admirou-se de novo.
— Hoje sei que estava errado. Minhas ambições satisfeitas não me deram a
alegria que esperava.
Luciana colocou a mão sobre o braço dele dizendo com voz serena:
— Todos os acontecimentos da vida guardam lições preciosas. O
senhor precisava compreender isso.
— Agora é tarde.
Luciana sorriu de leve.
— O senhor tem uma missão a cumprir neste mundo. Uma família para manter,
orientar, amar. O dever cumprido sempre nos dá muita dignidade.
— Tenho uma esposa indiferente e fria. Um casal de filhos, sempre ocupados
com as disciplinas que Maria Helena exige. Não parecem precisar de nada. Eu
tenho os negócios, nada mais. Apesar de tudo, foi muito bom haver encontrado
você.
Luciana suspirou:
— Sempre duvidei da morte de meu pai. Nunca me apresentaram seu túmulo.
Nunca se podia falar sobre ele. Agora, compreendo tudo.
— Espero que me perdoe e aceite minha amizade. Sinto-me feliz por havê-la
encontrado.
— Eu também. Agora, preciso ir. Vovó deve estar esperando.
— Vou levá-la a casa. Gostaria de falar a sua avó.
— Seria melhor prepará-la primeiro. Não desejo emocioná-la muito.
— Vou até lá, ficarei esperando do lado de fora enquanto conversa com ela e a
prepara para receber-me. É muito importante para mim falar-lhe.
— Está bem. Podemos ir.
Luciana morava em pequenina casa no subúrbio. Apesar do combinado, a moça
convidou-o a entrar. Vendo-os, Egle levantou-se da poltrona admirada.
José Luiz, emocionado, chapéu entre as mãos, esperava, fitando aquele rosto
envelhecido com respeito e ansiedade.
— Vovó — foi dizendo Luciana — este é um velho conhecido seu que veio
visitar-nos. Estava chorando no túmulo de mamãe.
Egle empalideceu e em seguida passou ao rubor. Quis falar mas a voz não saiu.
Durante anos, considerara aquele homem o grande responsável por todos os
sofrimentos que Suzane passara. Chegara a odiá-lo. Principalmente por presenciar a dignidade da filha que nunca o depreciara. Suzane sofria mas, ao mesmo tempo, compreendia que ele tinha o direito de escolher outro caminho.
Porém, não conseguia esquecer e amar outro homem. Sua vida havia ficado
destruída por essa traição.
Egle gostava de José Luiz, embora identificasse nele muita vaidade e ambição.
Mas Suzane o amava, e vendo-a feliz com as atenções e o carinho dele,
apreciava-o.
Contudo, depois do que ele fizera, seu coração encheu-se de
mágoa, ressentimentos, tristeza. Ele não tinha o direito de destruir os sonhos
de Suzane.
Era um homem egoísta, frio, capaz de trocar o amor pelo dinheiro e isso o
tornara desprezível a seus olhos.
Ajudara a filha a suportar as suas lutas, mas o espinho ainda estava cravado em
seu coração.
José Luiz avançou procurando fixar-lhe os olhos angustiados.
— D. Egle. Precisamos conversar.
Foi com voz baixa e dificultada pela emoção que ela respondeu:
— Agora nada mais há para dizer. Não deveria ter vindo.
— Eu precisava. Tenho sofrido muito. Estou arrependido!
Uma onda de indignação coloriu o rosto da velha senhora. A custo dominou-se.
Voltou-se para Luciana:
— Deixe-nos a sós.
A moça protestou.
— Sei de tudo, vovó. Estou a par do passado. Agora, conheço minha origem.
A velha olhou-a angustiada.
— O que lhe disse ele? Você acreditou?
Suzane haviam procurado fugir a esse encontro que mesmo agora, tantos anos
depois da morte da filha, ainda a atemorizava.
Guardou silêncio por alguns momentos, depois disse com voz magoada:
— Com que direito o senhor volta depois de tantos anos para remexer a ferida
que ainda dói?
— Foi o acaso que nos reuniu — disse ele, emocionado. —Eu nunca soube que
tinha essa filha. Não acha que isso também foi injusto? Durante anos procurei por
Suzane por toda parte. Jamais deixei de amá-la!
— Seu amor não foi o bastante para defendê-lo da ambição.
José Luiz baixou a cabeça pensativo. Ela prosseguiu:
— Nunca pensou quantas pessoas prejudicou?
Ele levantou a cabeça olhando-a corajosamente.
- Há muitos anos compreendi o meu erro. Procurei Suzane para pedir-
lhe perdão. Se eu pudesse voltar o tempo, tudo seria diferente, mas
infelizmente agora é tarde. Ela está morta. Nunca mais poderei dizer-lhe o
quanto me arrependi do que fiz. O quanto gostaria de ver seu rosto amado, seu
sorriso lindo, que nunca esqueci. Eu também não consegui esquecer. Esse é o
meu castigo.
Amá-la e não poder tê-la comigo. Desejar sua presença e saber que nunca mais
a verei. Todas as coisas que tenho na vida não são suficientes para suprir sua
ausência. No meu sofrimento, conforta-me saber que aqui estão Luciana e a
senhora, a quem posso pedir perdão. A quem posso implorar que me
compreendam e me ajudem a suportar a angústia de viver.
Lágrimas rolavam pelas faces de José Luiz, enquanto que ele apertava as mãos
nervosas, pronunciando as palavras com dificuldade, sem que pudesse contê-las.
Foi Luciana quem respondeu abraçando-o:
— Não posso perdoar, porque não posso acusar, nem julgar. Sei que está sendo
sincero. Sei que toda ilusão que valorizamos, a vida sempre destrói.
Nossos enganos têm um preço doloroso: a desilusão. Mas, tem uma
colheita preciosa: o amadurecimento. Apesar de tudo, sinto-me feliz porque eu estava órfã e agora tenho pai. Gostaria que fosse meu amigo. Se mamãe o
— A verdade. Quando terminei com Suzane, não sabia que ela ia ser mãe. Por que não me contou?
Egle deixou-se cair na poltrona sem saber o que dizer. Durante tantos anos, ela e Suzane haviam procurado fugir a esse encontro que mesmo agora, tantos anos
depois da morte da filha, ainda a atemorizava.
Guardou silêncio por alguns momentos, depois disse com voz magoada:
— Com que direito o senhor volta depois de tantos anos para remexer a ferida
que ainda dói?
— Foi o acaso que nos reuniu — disse ele, emocionado. —Eu nunca soube que
tinha essa filha. Não acha que isso também foi injusto? Durante anos procurei por
Suzane por toda parte. Jamais deixei de amá-la!
— Seu amor não foi o bastante para defendê-lo da ambição.
José Luiz baixou a cabeça pensativo. Ela prosseguiu:
— Nunca pensou quantas pessoas prejudicou?
Ele levantou a cabeça olhando-a corajosamente.
- Há muitos anos compreendi o meu erro. Procurei Suzane para pedir-
lhe perdão. Se eu pudesse voltar o tempo, tudo seria diferente, mas
infelizmente agora é tarde. Ela está morta. Nunca mais poderei dizer-lhe o
quanto me arrependi do que fiz. O quanto gostaria de ver seu rosto amado, seu
sorriso lindo, que nunca esqueci. Eu também não consegui esquecer. Esse é o
meu castigo.
Amá-la e não poder tê-la comigo. Desejar sua presença e saber que nunca mais
a verei. Todas as coisas que tenho na vida não são suficientes para suprir sua
ausência. No meu sofrimento, conforta-me saber que aqui estão Luciana e a
senhora, a quem posso pedir perdão. A quem posso implorar que me
compreendam e me ajudem a suportar a angústia de viver.
Lágrimas rolavam pelas faces de José Luiz, enquanto que ele apertava as mãos
nervosas, pronunciando as palavras com dificuldade, sem que pudesse contê-las.
Foi Luciana quem respondeu abraçando-o:
— Não posso perdoar, porque não posso acusar, nem julgar. Sei que está sendo
sincero. Sei que toda ilusão que valorizamos, a vida sempre destrói.
Nossos enganos têm um preço doloroso: a desilusão. Mas, tem uma
colheita preciosa: o amadurecimento. Apesar de tudo, sinto-me feliz porque eu estava órfã e agora tenho pai. Gostaria que fosse meu amigo. Se mamãe o amava tanto, é porque encontrou em seu coração a nobreza de alma, a elevação
de sentimentos, a grandeza interior. Eu também quero amá-lo. Agora que a
vida nos uniu, tenho a certeza de que mamãe nos abençoará.
José Luiz embargado pela emoção, abraçou a filha sem poder falar.
Ficaram assim, enlaçados, sentindo o coração bater forte, naquele reencontro de
almas, e José Luiz sentiu um sentimento novo de paz que há muito tempo não
experimentava, invadir-lhe o coração.
Envolvidos pela emoção, apenas Luciana percebeu a forma alva de Suzane que
os abraçava e em seu coração elevou silenciosa prece de gratidão a Deus.
Quando a emoção serenou, José Luiz, tendo entre as suas as mãos de Luciana,
considerou:
— Você não se parece com sua mãe só fisicamente, possui também
uma nobreza de alma que me enternece. Não me condenou pelo passado.
Isso aumenta a consciência da minha culpa. Porém, hei de provar-lhe
meu arrependimento, verá. Daqui para frente, cuidarei de você.
Egle olhou-o séria.
— Você tem uma família. Não prometa o que não poderá cumprir. Temos vivido
bem até aqui. Deixe-nos seguir nosso caminho em paz.
José Luiz fixou-a com firmeza:
— Vejo que ainda não me perdoou — disse.
— O arrependimento não apaga o sofrimento que nos vai na alma.
— Reconheço isso. Mas desejo esforçar-me, tentar pelo menos refazer aquilo
que me for possível. O que me resta senão isso? Sua mágoa é tanto quanto a
minha, insolúvel. O que podemos fazer agora?
Luciana abraçou a avó com ternura:
— Vovó, não agasalhe o ressentimento no coração. Isso não vai modificar o que
passou e não tem remédio. Pelo contrário, além de debilitar sua saúde, fazer-lhe
muito mal, ainda entristece mamãe que há muito compreendeu e perdoou. Se
ela, que foi a mais prejudicada, não guarda ressentimentos nem mágoas, por que
nós vamos fazer isso? Esquece o passado, vovó. Não somos suficientes para julgar e criticar ninguém. Abraça meu pai e vamos esquecer.
Procuremos daqui para a frente viver melhor e cultivar amizade e amor. Isso nos
fará mais felizes.
— Esquecer os sofrimentos de sua mãe? — tornou ela com voz dorida.
— Sim — respondeu Luciana num sopro — se ela sofreu foi porque
Deus permitiu. Deve ter sido por uma razão justa. Ela já perdoou e espera
que saibamos compreender. Espera também, antes de tudo, que nos
abracemos com otimismo e vontade de sermos melhores.
Egle baixou a cabeça sem saber o que dizer. Luciana tomou a mão da avó e
colocou-a sobre a do pai, dizendo:
— O passado está morto e nada poderemos fazer por ele. Mas, hoje, estamos
juntos e podemos nos esforçar para vivermos melhor.
Egle não teve mais argumentos, apertou a mão de José Luiz e aceitou o beijo que
ele delicadamente depositou nela.
— E agora — continuou Luciana — vamos nos sentar para conversar.
Quero saber tudo sobre o senhor, seus hábitos, seus gostos, suas idéias.
Vamos nos conhecer melhor, recuperar o tempo perdido.
José Luiz sentiu um brando calor aquecer-lhe o coração. Luciana
era encantadora. Ele deixou-se conduzir docilmente até gostosa poltrona onde
se sentou, enquanto ela acomodava-se em uma banqueta a seus pés.
Foi com prazer que José Luiz entregou-se àquele momento, descobrindo entre
surpreendido e encantado, as belezas daquela alma de mulher, tão jovem ainda,
mas possuidora de gosto requintado, instrução e uma espontaneidade que o
enlevavam.
José Luiz esqueceu-se do tempo, dos problemas, do passado, de tudo.
Só horas depois foi que deixou a modesta casa, sentindo o coração vibrar
de alegria e prometendo a si mesmo voltar muito breve.
Passava das 22 horas quando José Luiz entrou em casa, encontrando-
a parcialmente às escuras. Todos já haviam se recolhido. A não ser que
tivessem algo especial, uma visita ou uma data significativa, às 21
horas, invariavelmente, Maria Helena dava boa noite aos filhos que iam cada um
para seu quarto, e ela perguntava ao marido se precisava de alguma coisa.
Era como uma formalidade, porque a casa era muito bem administrada e
Amélia, a governanta, cuidava muito bem de tudo.
José Luiz tinha tudo à mão e um criado sempre atento aos seus mínimos desejos.
Invariavelmente ele respondia um “não, obrigado” e ela, em seguida, depois de
simples boa noite, ia para seus aposentos.
Dormiam em quartos separados. A princípio, não fora assim. Eles habitavam
suntuoso quarto de casal onde José Luiz dormia ao lado da mulher na belíssima
cama importada da França, em alvos lençóis de linho, finamente bordados.
Porém, no final da gravidez do primeiro filho a pretexto de não incomodá-la,
José Luiz escolhera dois quartos conjugados da bela e luxuosa vivenda
e transformara-os em ricos aposentos, confortáveis e belos, onde passou
a dormir.
Nunca mais expressou desejo de voltar a dormir na cama com a esposa, que
nunca o convidara ao retorno, ou lhe perguntara o porquê desse afastamento.
Apesar disso, José Luiz cumpria duas vezes por semana suas funções de marido,
passando pelo quarto da esposa antes de recolher-se ao seu. Com o correr do
tempo, esse contato foi espaçando, e agora, nem se lembrava quanto tempo não
ia ter com Maria Helena.
Às vezes, sua consciência o acusava de indiferença, mas ela nunca emitira
qualquer queixa. Talvez até não o amasse e aceitasse sua intimidade por
obrigação. Cansara-se de fingir um amor que não sentia. Ela era bonita, fina,
bem cuidada, aristocrata. No começo do casamento, ela algumas vezes havia
aparentado um ardor que o estimulara, fazendo-o ter esperanças de um bom
relacionamento conjugal. Mas, depois do nascimento do filho, ela tornara- se fria
e fechada, não demonstrando qualquer emoção e José Luiz, temperamento
ardente e romântico, justificava com essa atitude seu afastamento cada vez
maior da intimidade dela.
Era, porém, um marido socialmente impecável. Fazia questão de ser atencioso
com ela, de cumprir seus deveres de chefe de família. Acompanhava-a às visitas
de praxe. E, às terças-feiras, sempre estava em casa para o sarau costumeiro,
onde após a parte literária e musical, era servido vinho e licor, doces e café, indo
os homens para a sala fumar, enquanto as mulheres conversavam e os jovens
entretinham-se em brincadeiras de salão. Invariavelmente, entre 22:00 ou 22:30
horas, despediam-se os amigos e o casal, à porta, agradecia-lhes a presença,
convidando-os à semana seguinte.
Maria Helena sabia receber com fidalguia, e José Luiz orgulhava-se de sua
classe e finura, do seu bom gosto, dispondo tudo com luxo e distinção.
Além disso, era exímia pianista, havendo estudado até na França e, por
isso, sempre muito solicitada a que tocasse nesses saraus. Apesar de só tocar
os clássicos, ela os escolhia com muito bom gosto e era sempre muito aplaudida.
De vez em quando eles retribuíam comparecendo aos saraus de alguns amigos,
para haver reciprocidade. Eram sempre muito bem recebidos, não só pela
posição social que ocupavam como também pela classe, simpatia e finura com
que se comportavam. Eram tidos por todos como um casal modelo de felicidade
e bomtom.
José Luiz ainda sentia-se emocionado. Despediu o criado que calado o esperava,
tendo aprontado o leito e disposto seu traje de dormir. Enquanto se preparava
para deitar, seu coração batia descompassado, recordando os últimos
acontecimentos.
Deitou-se, porém a excitação não lhe permitia conciliar o sono.
Quando a noticia da morte de Suzane chegara ao seu conhecimento, uma
enorme sensação de perda o abateu. Jamais pensara na possibilidade dela haver
morrido. Suzane era a alegria, a própria vida. Como podia haver se transformado
em um corpo frio, morto, para nunca mais voltar?
Sentia-se revoltado pensando nisso, porém a presença de Luciana despertara nele
emoções novas. Ela era muito diferente dos seus dois filhos.
João Henrique era frio e distante como a mãe, e seu relacionamento com ele era
seco e disciplinar. Ele só se mostrava tocado em seu amor pela mãe.
Era ciumento no seu afeto e muito apegado a ela com quem demonstrava
muita afinidade. Maria Lúcia era muito timida e pouco comunicativa.
Obedecia sempre sem reclamar e ruborizava-se por qualquer coisa, e se
alguém mencionasse esse particular, não continha o pranto. Sua mãe era
enérgica com ela, escolhendo seus trajes, seu penteado, tudo, e ficava muito
irritada quando a inquiria sobre qualquer assunto e a via indecisa e ruborizada
sem saber o que responder. Costumava comentar com o marido as qualidades
do filho, tão inteligente, seguro e tendo sempre uma boa resposta para tudo e
seu desgosto com relação à filha que, apesar de não ser uma moça feia (era
até bonita), não tinha bom gosto, classe e possuia pouca inteligência.
José Luiz ouvia-a e assumindo seu papel de pai, lembrava a pouca idade da menina e sua esperança de que com o tempo, ela viesse a melhorar. Ele também não gostava de vê-la confundida e envergonhada, apagada e sempre em último
plano.
Luciana não era igual a eles. Tinha idéias próprias, era culta sem ser pedante ou
indiferente, carinhosa sem ser piegas, inteligente, dizendo coisas que o haviam
feito refletir. Verdades que ele nunca havia percebido antes.
Sentia enorme atração por ela. Gostaria de contar ao mundo que aquela linda
criatura era sua filha, mas reconhecia não poder fazer isso. Todavia, desejava
dar-lhe tudo o que pudesse, como a compensar o que negara no passado tanto a
Suzane quanto a ela própria.
José Luiz agitou-se no leito procurando posição mais confortável. Compraria uma
bela casa em lugar aprazível e a decoraria; daria a Luciana uma boa mesada
para manter-se com luxo e a riqueza que merecia. Talvez, lhe desse bens que
pudessem garantir-lhe boa renda para o resto da vida.
Era o mínimo que podia fazer por ela, depois de tudo quanto ela havia sofrido.
Era já madrugada quando José Luiz finalmente conseguiu adormecer.

Quando a Vida EscolheWhere stories live. Discover now