CAPÍTULO 5

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Sobraçando sua pasta de música, Luciana tocou a sineta da bela casa de José
Luiz. Faltava um minuto para às quatro e enquanto era introduzida na sala onde
Maria Helena a esperava, ouviu as quatro badaladas do grande relógio que havia
no saguão.
Maria Helena olhou-a enquanto dizia:
— Vejo que é pontual.
Luciana olhou o rosto da esposa de seu pai, curvou ligeiramente a cabeça,
dizendo:
— A pontualidade é uma qualidade que procuro cultivar.
— Sou Maria Helena.
— Sou Luciana. Recebi seu convite para esta entrevista.
Maria Helena olhou-a atentamente. Luciana estava muito bem vestida e era
muito bonita.
— Sente-se, por favor. Foi um amigo de meu marido quem me recomendou a
senhorita como preceptora de piano para minha filha. Por acaso dá aulas para
muitas moças?
Luciana sentou-se na poltrona que lhe era oferecida, colocando sua pasta no colo.
— Não, senhora. Eu realmente não faço da música um meio de vida.
Gosto de tocar, gosto de ensinar. Amúsica é um prazer que enriquece o espírito.
— É idealista. Eu pensei que desse aulas para viver.
— Se eu precisasse, talvez, mas eu e vovó temos uma renda suficiente.
— Então não compreendo.
— Gosto de ensinar.
— Se eu contratá-la, preciso pagar.
— Concordo. Entretanto, eu me reservo o direito de dar aulas só para alunas
muito bem escolhidas, coisa que quem luta pela subsistência não pode fazer.
Apesar de admirada, Maria Helena gostou da firmeza e da segurança
de Luciana. Por certo, deveria ser muito eficiente, —pensou ela.
— A senhorita estudou em que conservatório?
— Fui educada em Londres e estudei piano no Harmony House.
Maria Helena fitou-a com respeito. Seu sonho sempre fora estudar naquele local.
Por certo estava diante de uma grande virtuose.
— Poderia tocar para mim?
— Por certo, senhora.
Maria Helena conduziu-a à sala vizinha, abrindo o piano. Luciana,
com segurança, escolheu a partitura e colocou-a no piano. A outra, em pé ao
lado, observava-a.
Luciana começou a tocar. Colocou toda alma na peça que executava.
Saiu perfeita. Maria Helena deu-se por satisfeita.
— Muito bem. Gostaria de contratá-la. Acertar os detalhes.
— Primeiro, antes de aceitar, desejo conhecer sua filha.
— Desde já posso descrevê-la para a senhorita. Ela tem dificuldade de aprender,
precisa muita paciência com ela.
— Poderia apresentar-me? Não posso aceitar sem saber se ela me aceitará.
— Minha filha faz o que eu quero. Obedece. Mas não vejo inconveniente em
chamá-la.
Ela tocou a sineta e ordenou à serviçal que fosse buscar a filha. Maria Lúcia
apareceu alguns minutos depois. Cabeça baixa, entrou na sala, mal olhou para
Luciana.
— Esta é Maria Lúcia. Esta é Luciana, professora de piano.
Luciana levantou-se e estendeu a mão para a moça:
— Como vai?
— Bem. — balbuciou ela pegando a mão de Luciana frouxamente.
— Sua mãe quer que eu venha dar aulas de piano para você. O que acha? Maria
Lúcia baixou os olhos.
— Não sei. Se minha mãe quer, está certo.
Luciana notou que a moça estava tensa. Voltou-se para Maria Helena:
— Está bem. Vamos combinar tudo. Virei duas vezes por semana.
Maria Helena acertou todos os detalhes que Luciana concordou plenamente.
Tudo combinado, Luciana levantou-se. Percebeu que Maria Lúcia a observava
furtivamente.
— Espero que seja paciente e que realmente goste de ensinar. Maria
Lúcia não aprende com facilidade. É preciso muita disciplina e muita insistência.
O rosto da moça cobriu-se de rubor. Luciana respondeu calma:
— Terei muito prazer em estar com Maria Lúcia e fazê-la sentir a beleza da
música e o prazer da execução. Ela vai aprender rapidamente, tenho a certeza
disso.
Maria Helena fitou o rosto corado da filha, olhos postos no chão, sem nada dizer.
Suspirou e não insistiu. Luciana cedo descobriria o que ela tentara dizer. Luciana
despediu-se. Em casa, sua avó esperava-a ansiosa. Vendo-a entrar, perguntou:
— E então?
Luciana colocou a pasta sobre a mesa e respondeu alegre:
— Consegui! Vovó, estou contratada. Egle balançou a cabeça:
— Acha que dará certo? Se Maria Helena descobrir a verdade, ficará furiosa.
Ninguém gosta de ser enganada.
— Ela não saberá, vovó. Serei discreta e muito eficiente. Verá. Se você visse
Maria Lúcia, ficaria penalizada. É tímida, dominada. Pareceu-me indiferente,
sem vontade de reagir, de lutar e ocupar seu lugar no mundo.
— Não será deficiente mental?
— Papai garantiu que não é. Fez todos os exames médicos. É questão de
personalidade.
— Acha que poderá ajudá-la?
— Acredito que sim. Quero tentar. Você me ajudará.
— Eu?!
— Sim. Com sua experiência e orientando as aulas. Começarei na próxima
terça-feira à tarde. Como deverá ser tecnicamente a primeira aula? O que
deverei ensinar?
— Vou preparar tudo.
— Entendo o que papai quis dizer quando mencionou que Maria Helena era
formal. Sequer me ofereceu um chá. Falou o estritamente necessário. Você tinha
razão. Quando mencionei o Harmony House, ela se impressionou.
— Eu sabia.
— Acho que foi meio caminho andado. Minha execução saiu perfeita. Queria
que você estivesse lá.
Egle abraçou a neta com carinho.
— Não duvido. Você é uma feiticeira. Não me surpreenderei se transformar essa
menina. Agora, vamos tomar o nosso chá. Está na hora.
Abraçadas, as duas dirigiram-se à cozinha.
José Luiz chegou em casa para o jantar e embora estivesse ansioso para saber,
achou prudente não perguntar. Foi Maria Helena quem, depois do
jantar, mencionou o assunto.
— A nova professora de piano esteve aqui.
José Luiz procurou dissimular o interesse. Ela prosseguiu:
— Achei-a muito moça. Contudo, pareceu-me muito discreta e educada.
— É boa profissional?
— Parece ser. Depois, estudou em Londres no Harmony House. Executou uma
peça com clareza e segurança. Tem uma particularidade curiosa, não dá aulas
para viver.
— Não?
— Não. Aliás estava muito bem vestida. Disse que gosta de ensinar música e o
faz por prazer.
— Interessante.
— Mas eu disse-lhe que só a aceitaria para dar aulas a Maria Lúcia, se recebesse
pelo seu trabalho.
— Fez bem. E ela?
— Concordou. Mas, antes de aceitar ser professora de nossa filha, quis conhecê-
la. Tive receio que vendo-a, Luciana desistisse, contudo, ela aceitou.
— Você a contratou?
— Sim. Virá duas vezes por semana, à tarde.
— Como lhe pareceu essa moça?
— Um pouco idealista. Eu fui honesta e falei das dificuldades de Maria Lúcia.
Ela não se importou. Cedo perceberá seu engano. Só espero que não venha a
desistir.
— Talvez uma moça educada e fina possa influenciar Maria Lúcia, e desperte
nela o gosto pela vida.
Maria Helena suspirou:
— Se isso acontecesse, seria um milagre.
— Vamos ver. Gente jovem precisa de companhia de pessoas de sua idade. —
Maria Lúcia não tem amigas porque não quer. Nos saraus, isola-se, não conversa,
e as outras moças cansaram-se de sua indiferença.
— Sei que ela é difícil. Mas, precisamos tentar alguma coisa. Se essa professora
for inteligente, poderá ganhar-lhe a estima e aí fazê-la melhorar.
— É, pode ser. Luciana é moça educada e parece muito fina.
— Pelo que sei é de excelente família.
— Vamos ver. Terça-feira ela virá para a primeira aula.
José Luiz exultava. Luciana conseguira. Soubera posicionar-se.
Percebera que Maria Helena referia-se a ela com cortesia. Escondeu a
alegria. Tinha impulsos de sair, ir à casa da filha saber todos os detalhes,
porém, controlou-se. Esperaria pelo dia seguinte.
Na terça-feira, pontualmente, às 14 horas, Luciana, sobraçando sua pasta de
música, foi introduzida em casa de Maria Helena. Na sala, Maria Lúcia
esperava, sentada ao lado da mãe. Trajava severo vestido cinza, os cabelos
puxados para trás e preso na nuca em birote. Luciana cumprimentou-as
curvando a cabeça. Depois disse:
— D. Maria Helena, antes de iniciar a aula, gostaria de falar-lhe a sós por alguns
instantes.
— Está bem. Venha ao meu gabinete, por favor.
Passaram para outra sala e Maria Helena fechou a porta.
— Estou às suas ordens.
— D. Maria Helena, sua filha parece-me uma moça muito tímida. Tenho meus
métodos de ensino. Antes de começar a ensinar, preciso de uma avaliação do
que ela já sabe. Porém, não quero constrangê-la. Ao contrário, pretendo deixá-la
menos tensa, mais serena. Ninguém pode avaliar um músico se ele estiver
nervoso.
Apesar de surpresa, Maria Helena reconheceu que ela tinha
— O que pretende fazer?
— Gostaria de conversar com ela, sem que ninguém nos interrompesse e que a
senhora não se admirasse se hoje eu não conseguir que ela execute nada.
Gostaria de conhecê-la melhor. Desta forma, verei qual o melhor método a ser
usado. As pessoas são diferentes umas das outras e o que dá bom resultado com
algumas, pode não dar nenhum com outras.
— É interessante seu ponto de vista.
— Essa técnica é usada no Harmony House. Desejo informá-la que, além do curso de piano, sou educadora formada. Preciso conversar com Maria Lúcia.
Maria Helena satisfeita, concordou. Sua filha bem que precisava de
uma educadora.
— Faça como achar melhor. Não interferirei.
— Obrigada. A senhora verá que ela vai aprender.
De volta à sala onde Maria Lúcia esperava sentada ainda na mesma posição,
Luciana fechou a porta. Depois, sentou-se em frente a moça, conservando-se
calada. Durante dez minutos as duas conservaram-se na mesma
posição. Dirfarçadamente Luciana observava. De repente, Maria Lúcia levantou
os olhos fixando-os em Luciana. Esta sorriu. Amoça baixou novamente o olhar
um pouco corada. Luciana continuou em silêncio.
Maria Lúcia remexeu-se na cadeira, tornando a fixá-la. Luciana sorriu de novo.
Percebia que a moça começava a ficar curiosa. Preparara-se para uma aula
sofrida, odiosa, com uma desconhecida e agora, lá estava ela, parada, sem fazer
nada. O que estava acontecendo?
O silêncio pesava e ela não sabia o que fazer. Sempre esperava pela iniciativa dos
outros para tomar qualquer atitude. Por que a outra ficava calada? Se ela estava
esperando que ela, Maria Lúcia, começasse o assunto, perdia seu tempo. Odiava
piano e não ia aprender nada. Não tinha jeito para a música. Jamais tocaria
como a sua mãe. Por que não desistiam?
Essa professora calada em sua frente... Por quê? Talvez ela tivesse mentido e não
gostasse de dar aulas. Talvez precisasse mesmo do dinheiro.
Mentira para que sua mãe lhe pagasse melhor.
Assim, não precisaria fingir. Podia abertamente dizer que não gostava de estudar
música.
Olhou-a novamente, sua curiosidade era evidente.
Luciana sorriu levemente. Decorrera meia hora sem que dissessem
uma palavra. Por fim, Maria Lúcia disse com voz muito baixa:
— Você não gosta de dar aulas de música!
— Gosto — respondeu Luciana. — A música alimenta o espírito e alegra a alma,
faz bem ao coração.
Maria Lúcia sacudiu a cabeça negativamente. O silêncio novamente colocou-se
entre ambas e foi Maria Lúcia quem o quebrou:
— Você não veio para uma aula de piano?
— Vim.
— Está esperando o quê?
Maria Lúcia sentia-se inquieta, nervosa, irritada. Por que ela não acabava logo
com aquilo?
Queria ir logo para o seu quarto. Estava até disposta a tocar alguns exercícios e
depois ficar livre. D. Eudóxia era fria, indiferente, agüentava impávida seus erros
ao piano. Sua mãe pagava-lhe para isso. Desprezava-a.
Ela agüentava tudo por causa do dinheiro.
— Quer começar agora? — perguntou Luciana com voz firme.
— Mostre-me o que estava estudando.
Maria Lúcia obedeceu. Dirigiu-se ao piano, apanhou o livro de
exercícios, colocou-o no piano, abrindo-o. Luciana observava-a:
— Pode começar.
Maria Lúcia começou a tocar lento e muito mal. Não foi interrompida por
Luciana que ouviu-a até o fim.
— O que mais estava aprendendo?
Maria Lúcia procurou outro exercício e o tocou tão mal quanto o primeiro.
Durante meia hora a moça tocou, e Luciana ouviu sem comentar nada.
— Por hoje basta.
Amoça levantou-se, guardou as partituras. Ela não mandara parar nem criticara
seus erros. Impossível que não os tivesse percebido. Seria uma professora tão
ruim assim? Melhor, porque assim, quem sabe, sua mãe desistisse e a deixasse
em paz.
Luciana aproximou-se, olhando-a nos olhos, disse com voz
— Maria Lúcia, apesar de você errar de propósito, de não querer estudar música
e de estar louca de vontade de ir fechar-se em seu quarto, de querer que eu
desista, sua mãe desista, eu vou dar-lhe aulas de música. E afirmo que você vai adorar.
A moça, corada, cabeça baixa, não encontrou resposta. Seus lábios começaram a tremer e Luciana percebeu que ela ia chorar. Fingindo não notar, prosseguiu
firme:
— Eu vou fazer isso, porque acredito que você é capaz de aprender tudo se
quiser. Para que você queira, é preciso gostar. Procurarei tornar nosso tempo
juntas, muito agradável.
Amoça começava a soluçar.
— Agora, eu vou embora. Se quiser chorar, chore. É um direito seu. Mas quero
que saiba que gosto muito de você e pretendo ensiná-la a gostar de mim. Passe
bem. Voltarei na próxima sexta-feira.
Levantou o rosto de Maria Lúcia e beijou-a delicadamente na face, e saiu.
Maria Helena não estava ali. Amoça dirigiu-se à criada.
— Vou embora. Não incomode D. Maria Helena. Dê-lhe meus cumprimentos.
Estarei de volta no dia marcado. Passe bem.
Maria Helena ouviu a criada transmitindo-lhe o recado e não disse nada.
Sua ausência fora proposital. Ouvira a péssima execução da filha e
estava irritada. D. Eudóxia estava habituada com a burrice de Maria Lúcia, mas
Luciana não. Temia que ela desistisse. Nesse caso, não teria jeito de
chamar novamente a velha professora. Fora-lhe difícil despedi-la. Ela ficara
ofendida, apesar da delicadeza que tivera.
Depois que Luciana se foi, entrou na sala, mas a filha já se recolhera. Maria
Helena sentou-se no sofá, pensativa. Por que sua filha nascera tão incapaz? Que
diferença de João Henrique! Fundo suspiro escapou-se-lhe do peito. Não sabia de
nenhum caso na família. Por que teria acontecido com ela, por quê? Sentia-se
particularmente triste naquela tarde. Luciana era moça bonita, inteligente, culta,
que diferença de sua filha!
Pensou no marido. Ele estaria certo colocando junto à filha uma moça tão bonita
e cheia de atributos? Não iria deixar Maria Lúcia mais tímida,
mais insignificante? Num ponto concordava com ele: alguma coisa precisava ser
feita. Daria resultado? Estava disposta deixar Luciana tentar. Não sabia se a moça
teria paciência suficiente.
Quando Luciana saiu, Maria Lúcia parou de chorar. Apanhou sua pasta de música e foi para o quarto. Finalmente estava livre, pensou. Fechou a porta por dentro e atirou a pasta sobre a cama. Se sua mãe visse, iria repreendê-la.
Queria cada coisa em seu lugar. Sentiu uma onda de rancor, misturada a
um pouco de satisfação. Aquele era o seu território. Podia fazer o que
lhe aprouvesse, desde que sua mãe não visse.
Sentou-se no chão e soltou os cabelos. Os grampos a incomodavam.
Encostou as costas no lado da cama e fechou os olhos. Seria bom se ela pudesse
dormir. Viver era horrível. Abominava sua casa, a disciplina que era obrigada a
seguir. Tudo era monótono e sem graça. Olhou a boneca que estava sobre a
cama.
— Preferia ser ela — pensou — é bonita e não precisa fazer nada. Não gosta
nem odeia. Não sente nada. Aconteça o que acontecer, está sempre com a
mesma cara. Se eu fosse ela, eles me deixariam aqui, sem ser nada, sem ter que
aprender nada. Mas eu não sou, infelizmente! Logo mamãe vai mandar
me chamar para o lanche. Terei que suportar tudo de novo. E se eu jogar tudo
no chão? Quero ver a cara dela. Vai ficar furiosa.
Maria Lúcia sorriu levemente. — Ela fica furiosa, mas não chora como eu.
Quando eu choro, ela fica ainda mais nervosa. Ela nunca chora! Essa professora
de música nem ligou quando eu chorei...
Seu rosto cobriu-se de rubor, e ela levou as mãos às faces.
— Ela percebeu que eu errei de propósito! D. Eudóxia nunca percebia isso. Essa
é mais esperta. — Ela deu de ombros. —Melhor. Assim ela perceberá rápido que
eu não dou para a música e me deixará em paz. Quem sabe mamãe desista!
Ela levantou-se do chão e começou a andar pelo quarto. —Ela não desistirá!
Nunca consegui nada dela. Posso morrer que ela não me atenderá.
Se eu morrer, ela vai sentir remorso! Vai se arrepender. Vou ficar sem comer até
morrer! Ela vai ver!
Sentou-se na cama.
— Vai se arrepender nada. Ela não gosta de mim. Ela me persegue, me odeia.
Vai dar graças a Deus por ver-se livre de mim. Eu sou a sua vergonha.
Seu rosto ruborizou-se novamente. Passou as mãos pelas faces.
Lembrou-se do beijo de Luciana. Sua mãe nunca a beijara. Ninguém a beijava.
Quem gostaria de beijar uma moça feia como ela? Seu irmão, seu pai,
ninguém a beijava.
Maria Lúcia passou os dedos pela face onde Luciana pousara os lábios com
doçura. Essa professora de piano dissera que gostava dela. Por que teria mentido?
Estaria com pena? Ou pretendia comprar-lhe a obediência? Ela ia ver uma coisa.
Não estava disposta a aprender nada, fingir uma amizade que não podia sentir.
Ela era feia, sem graça, incapaz. Por que alguém iria gostar dela?
Na sexta-feira, quando Luciana chegou, a moça estava na sala de música, com a
mesma postura, o mesmo penteado e vestido tão severo como o da primeira vez.
Luciana fechou a porta, colocou sua pasta sobre a mesa e, aproximando-se de
Maria Lúcia, estendeu-lhe a mão.
— Como vai?
— Bem — disse ela, apertando a mão que lhe era estendida, sem levantar o
rosto.
— Está um lindo dia. Você já deu uma volta pelo jardim?
— Não — balbuciou ela.
— Não sabe o que está perdendo. Gostaria que a nossa aula hoje fosse ao ar
livre?
Maria Lúcia não entendeu:
— Não há piano no jardim — disse.
— Podemos deixar o piano por hoje. Há outras coisas que eu gostaria
de conversar com você.
Essa professora era diferente. O que pensaria sua mãe vendo que ela não lhe dava aula de piano? Por certo, ficaria contrariada. Pagava-lhe para isso! — Se prefere ficar aqui e ir ao piano, pode dizer — tornou Luciana.
Maria Lúcia sacudiu a cabeça.
— Não. Vamos ao jardim.
Procurou dissimular a satisfação. Aquela professora tinha os dias contados em
sua casa. Em breve estaria livre dela.
Luciana abriu a pasta de couro que trouxera e tirou dela um livro finamente
encadernado.
— Vamos — disse. Vendo que Maria Lúcia estava interdita, esclareceu:
— Não precisa levar nada. O que tenho basta.
Foram ao jardim.
— Vamos procurar um lugar bem bonito — Luciana respirou gostosamente. —
Que delícia de perfume — disse. Parou, olhou para Maria
Lúcia e perguntou: — O que é?
— Não sei, não estou sentindo nada.
Luciana segurou o braço de Maria Lúcia.
— Experimente prestar atenção. Sinta que coisa deliciosa. Aspire esse ar!
Feche os olhos e aspire.
Maria Lúcia obedeceu. Sentiu o perfume.
— Vamos ver de onde vem? — disse Luciana alegre.
— Que importância tem isso? — pensou Maria Lúcia. Queria ver a cara de sua
mãe quando soubesse o que se passava.
Luciana puxava-a pela mão. Seguiu-a docilmente.
— Olhe que beleza! Ë desse pé de jasmim! Está coberto de flores. Não é lindo?
O olhar de Maria Lúcia ia do rosto de Luciana ao pé de jasmim sem saber o que
dizer.
— Feche os olhos e sinta o aroma; é delicioso! Ela obedeceu. Luciana continuou:
— São coisas que a mãe natureza faz para enfeitar nossa vida! Vamos nos sentar
nesse banco. Nossa aula hoje será aqui.
A outra olhava sem entender. Como iria estudar piano em um banco do jardim?
Apesar disso, sentou-se, cabeça baixa. Luciana acomodou-se a seu lado. De repente, disse num murmúrio:
— Olhe um beija-flor. Que lindo! Não se mexa para não asssustá-lo!
Maria Lúcia olhou e viu o pássaro voando sobre o jasmineiro, introduzindo o bico
nas flores. As duas ficaram em silêncio observando-o.
Quando ele se foi, Luciana considerou:
— As vezes, penso que seria bom ser como ele. Poder voar, sentir o perfume das
flores.
Maria Lúcia havia pensado em ser como a boneca, mas passarinho seria melhor.
Poderia voar para o céu, sair dali para sempre. Não disse nada.
Luciana, depois de alguns segundos, continuou:
— Só às vezes, porque ele é muito lindo e me comove. Éclaro que ser gente é
muito melhor do que ser passarinho.
Maria Lúcia fez pequeno e quase imperceptível gesto de contrariedade, mas
Luciana percebeu e indagou:
— Você o que acha?
— Não sei.
— Se você pudesse escolher, o que gostaria mais de ser: um pássaro ou gente?
— Ser uma boneca — disse ela.
Luciana sorriu:
— Não estamos falando em boneca. Você acha que seria melhor do que ser
gente, ou beija-flor?
— É bobagem. Nunca vamos ser nada disso.
— Faz de conta. Nunca brincou de fazer de conta?
— Não.
— A gente pode ser tudo o que quiser. É só fazer de conta. Por que preferia ser uma boneca? Para ser muito bonita?
Amoça enrubesceu.
— Não é isso — disse.
— Então por quê?
— Porque ela pode ficar no quarto e não tem que fazer nada. Não
precisa aprender nada.
Luciana sentiu uma onda de carinho por Maria Lúcia, tomou-lhe as mãos entre
as suas e disse com suavidade:
— Maria Lúcia, você não precisa ser uma boneca, nem um pássaro, porque você
é um espírito criado por Deus! Tem alma, sentimentos, amor no coração. Tem
inteligência para perceber todas as coisas boas do mundo. Pode olhar a natureza,
os seres vivos, o céu, as estrelas, o mar, o sol, as flores, sentir a força de Deus
que existe em tudo e acordar para a felicidade, para o progresso e para a vida!
Você é muito mais do que uma boneca!
Maria Lúcia tremia como folha batida pelo vento. Olhava para Luciana e em
seus olhos havia um misto de surpresa e dor.
— Você é um ser humano. Você é criação perfeita de Deus!
Maria Lúcia apertou as mãos de Luciana com uma voz que vibrava disse:
— Não sou nada disso.
Luciana retirou as mãos.
— Deus fez você perfeita. Mas, o que você está fazendo com você, é muito triste.
— Eu?
Ela queria gritar que sua mãe era culpada. Que sempre a
desprezara, envergonhava-se dela, punia-a só porque ela não era inteligente ou
bonita como João Henrique. Ela nascera assim, que culpa lhe cabia? Mas não
disse nada. Baixou os olhos e engoliu a mágoa.
Luciana disse com suavidade:
— O que você faz com você é problema seu. Nada tenho com isso.
Agora, eu a vejo como você é; amorosa, inteligente e sozinha. Muito sozinha.
Gostaria que aceitasse minha amizade de verdade.
Havia ternura e sinceridade em Luciana que estava comovida. Vendo que ela
não respondia, perguntou:
— Você quer?
Maria Lúcia olhou-a e havia tanta dor em seus olhos que Luciana abraçou-a com
força. Permaneceram abraçadas durante alguns minutos.
Luciana sentia que a moça também a abraçava.
Você ainda não me respondeu — disse.
— Quero — disse Maria Lúcia por fim.
— Muito bem. Agora chega de falar de nós. Já somos amigas mesmo.
Quero que veja esse livro que eu trouxe especialmente para mostrar a você.
É um livro raro que pertence a minha avó. Veja que linda capa. É trabalho
de verdadeiro artista. As letras foram gravadas com ouro mesmo.
Maria Lúcia olhava com admiração. Nunca se detivera para olhar a capa de um
livro. Não gostava de ler.
— Passe o dedo sobre as letras e sinta o relevo.
Apanhou o dedo indicador de Maria Lúcia e colocou-o sobre as letras.
— Ele poderia ter feito letras simples, porém, se deu ao trabalho de fazer estas,
sabe por quê?
Maria Lúcia sacudiu a cabeça negativamente.
— Por que estas são mais bonitas, têm mais arte e valorizam mais o livro.
Não acha que são lindas?
A moça olhava sem responder. Luciana prosseguiu:
— Gostaria que você pudesse ver outras mais simples para perceber a diferença.
Não as tenho aqui, mas trarei outro dia para mostrar-lhe.
Segurou a mão da moça e continuou:
— Olha sua mão, a minha mão, elas são preciosas. Possuem o dom
de transformar o mundo.
Maria Lúcia olhava boquiaberta.
— Não concorda comigo?
— Não sei...
— Muitas coisas que nos rodeiam foram feitas por mãos humanas. Quer ver? Ela
concordou. Luciana abriu o livro logo no começo onde havia algumas esculturas
de mãos famosas.
— Muita gente sabe disso, tanto que estes artistas lhes prestaram homenagem.
Aqui mesmo, vamos ver o que foi feito pelas mãos das pessoas.
Você percebe aqui alguma coisa feita pela mão?
Ela olhou ao redor, depois disse:
— O banco onde nos sentamos.
— É verdade. Vamos ver quem consegue ver mais coisas. Agora é minha vez. O
poste do lampião. Foi o ferreiro.
Maria Lúcia concordou.
— Agora é você. Vamos ver quem vê mais. Temos um ponto cada uma.
Maria Lúcia olhou em volta entretida. Pela primeira vez, Luciana percebeu um
brilho mais vivo em seu olhar. Sentiu-se feliz por isso e prosseguiu alegremente
conseguindo que Maria Lúcia sorrisse algumas vezes. A certa altura, olhou-a nos
olhos e disse com firmeza:
— Você foi feita para sorrir. Tem um lindo sorriso.
A outra corou e imediatamente voltou à postura costumeira. Fingindo
não perceber, Luciana continuou:
— Mas para que não se envaideça, acho seu vestido muito triste e em desacordo
com a beleza do seu sorriso. Essa cor é muito severa; você, de rosa ou de verde,
ficaria mais bonita. Acha que a cor do meu vestido fica bem com o tom da
minha pele?

Maria Lúcia olhou-a e achou-a linda. Porém balbuciou:
— Não sei...
— Somos amigas. Entre amigas trocam-se idéias sobre moda, beleza. É verdade
que os gostos são diferentes. Você gosta da cor do seu vestido, por certo. Já eu,
achõ que ficaria melhor de outra cor. Eu gosto do meu, mas você pode pensar
diferente. Ébom trocar opinião. Olhe para mim, o que acha do meu vestido?
— É bonito. Fica-lhe muito bem.
Luciana beijou-lhe a face com alegria.
— Obrigada, querida. Você é gentil.
Fingiu não ver o embaraço e o rubor da outra. Ficaram tão entretidas que o
tempo passou rápido. Luciana, vendo que o sol já estava para ocultar-se e que a
tarde findava, levantou-se dizendo:
— Já está escurecendo! Passei da hora. Você tinha algum compromisso?
Maria Lúcia balançou a cabeça negativamente e Luciana continuou:
— Sinto muito! Estava tão agradável aqui, conversando com você que esqueci de
tudo.
Maria Lúcia queria dizer que apreciara a tarde, mas não teve coragem.
— Desculpe. Vou embora agora. Vamos entrar.
Maria Helena estava curiosa. Aquela professora era diferente. Passara a tarde no
jardim, fora além do horário combinado. Ao entrar na sala, Luciana foi logo
dizendo:
— Desculpe, D. Maria Helena. Abusei da hora. Estava tão agradável nossa
conversa que nem percebemos passar o tempo. Maria Lúcia disse-me que não
tinha outro compromisso.
A curiosidade de Maria Helena acentuou-se. Ninguém achava agradável passar a
tarde com Maria Lúcia. O que teria acontecido?
— É verdade. Alegro-me que tenham apreciado a aula.
Luciana sorriu levemente ao dizer:
— Hoje, preferi cultura artística. Faz parte da formação musical. Trouxe este
livro de arte para ilustrar nossa aula. Gostaria que a senhora o examinasse. Trata-
se de obra rara da coleção de minha avó.
Maria Helena apanhou-o admirada. Folheou-o com delicadeza. Era
uma preciosidade. Estava satisfeita. Começava a pensar que essa professora
fora um achado. Além de não aborrecer-se com a burrice da filha, tinha classe
e cultura invejáveis. D. Eudóxia nunca tivera essa idéia. Intrigava-a o ar
tranqüilo de Maria Lúcia e a satisfação de Luciana. Achar agradável dar aula
para sua filha era de espantar.
Devolveu o livro dizendo com satisfação:
— É uma preciosidade!
— Sabia que ia apreciar.
Apanhou sua pasta, guardou o livro e despediu-se. Sentia-se esperançosa e feliz.
Haveria de alcançar seu objetivo.

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