Polaroides Manchadas

Multidão.

-- Eu tenho certeza que quando você pintou essa parte azul aqui ficava pra baixo. -- Falei, olhando Leticia ao meu lado.

Estavamos num evento de exposição de artes, otimo para novos artistas trocarem experiências ou conseguirem um reconhecimento maior. Mike, primo da garota ao meu lado, era o organizador. Os dois não eram exatamente primos porém os pais deles eram grandes amigos, cresceram juntos e todo mundo já aceitava que a família dos dois era praticamente uma só. Fazia quase um mês que eu e Leticia tínhamos algo relativamente sério e lá estávamos nós, em mais um dos eventos regulares que ela participava. Aquela tela que ela decidiu pôr em exposição eu a vi pintando, mas como era arte moderna, são só tintas na tela. Okay, isso é bem leigo de dizer, porém, era assim os quadros dela.

Tudo bem que todos os tons e traços transmitiam uma energia e mensagem, mas eram tão volátil que não chegava a ser concreto. Eu a vi pintar aquele quadro e eu tinha minha absoluta certeza que a parte azul, que ela colocou para a esquerda, era na verdade a parte de baixo. Passamos longos segundos encarando a tela e tentando decidir como ela ficava melhor.

-- Que tal assim... -- Ela girou a tela, deixando a parte azul pra cima. -- Agora parece um céuzinho em pôr do sol pelos laranjas, roxos, vermelhos e rosas... -- Leticia me abraçou de lado.

-- É, realmente faz mais sentido assim... -- Ri, dando um beijinho de esquimó nela.

Ela se afastou de mim, olhando em volta. Dei um mini salto e disse "já volto" ao parecer encontrar o que procurava. Enquanto ela seguia a aventura dela com passos apressados entre a multidão, resolvi passear pelos outros quadros, tanta coisa bonita estava ali espalhada esperando para ser vista. Comecei minha caminhada pelas molduras, pelos quadros que fazia uma espécie de corredor. A arte tinha dons tão únicos no mundo inteiro, porque arte não tem idioma. Podia ser lida por qualquer um, em qualquer idioma. Não precisa de idade, nem nada. Uma criança poderia ver tanta coisa naquele quadro que eu olhava agora, igual um idoso, que também teria uma visão tão particular daquelas pinceladas na tela.

Leticia estava perdida no meio da multidão, como Mike. Ri, sozinha, lembrando da tentativa dele de ter algo comigo, mas aí eu conheci a prima dela, e isso, com toda certeza, era motivo dela rir da cara dele. Meus pés vaguavam a galeria, descobrindo cada poesia em forma de tinta daquele lugar. Tudo ali era tão simples e tão complexo ao mesmo tempo. Parei em frente a um quadro do romantismo. "Unósversos". O quadro tinha cores quentes, uma mulher cacheada nua, os fios cor de cobre, meio loiro, meio ruivo, meio não sei definir. Ela estava sentada na cama, apoiada no braço, olhando a janela, e ao lado dela uma outra menina dormia, enrolada nas cobertas com os fios negros caindo por todo canto.

A janela mostrava um espaço incrível. A pintura por si só falava muito. Universos, um nós nos versos, nós nos versos, nós no universo..... quando vi, estava tonta. Minha cabeça parecia ter dado uma volta ao redor da terra. As pessoas começaram a se aglomerar e eu notei que o evento realmente ia começar. Continuei focada no quadro, querendo decorar o máximo dele possível. Peguei meu celular e tirei uma foto para admirar mais depois. Então, antes das luzes apagarem, senti um flash atrás de mim. Olhei pra trás, numa busca da origem. Uma multidão de corpos estavam criando um formigueiro a minha frente. Não consegui ver nada. O discurso continuava para o buffet ser liberado, junto com as bebidas.

Eu ainda procurei por mais alguns segundos a origem do repentino flash, mas resolvi desistir. Dezenas de pessoas estavam com câmeras ali, podia ser qualquer um e, afinal, porque alguém tiraria foto de mim? Suspirei até sentir Leticia me puxando pela mão, me puxando para dentro.

Se eu soubesse nesse dia tudo que ia acontecer, eu com toda a certeza teria procurado mais. O cheiro no ar era de terra, de madeira, de paz. Eu não sabia, mas era cheiro dela. E toda grandeza que ela levava dentro de si.