1 Sydney

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ACORDEI NO ESCURO.
Não era nenhuma novidade, já que eu tinha acordado no escuro nos últimos… bom, não sabia quantos dias. Podiam ser semanas ou meses. Eu havia perdido a noção do tempo naquela
cela fria e minúscula, com o piso de pedra dura servindo de cama. Meus captores podiam me manter acordada ou dormindo com a ajuda de uma droga que tornava impossível medir a passagem do tempo. Durante um período, tive certeza de que a droga estava na comida ou na água, por isso entrei em greve de fome. Não adiantou, e a única coisa que consegui foi ser
alimentada à força — uma experiência que nunca, nunca mesmo, gostaria de repetir. Finalmente entendi que a droga vinha através do sistema de ventilação e, ao contrário da comida, não dava para entrar em greve de ar. Por um tempo, tive a ideia fantasiosa de contar os meses a partir do meu ciclo menstrual,
como as mulheres faziam em sociedades primitivas, sincronizando-se com a lua. Meus captores, defensores da limpeza e da eficiência, haviam até fornecido produtos de higiene
feminina para quando chegasse a hora. Mas esse plano também não deu certo. Parar o anticoncepcional de repente desregulou meus ciclos e tornou impossível medir qualquer coisa,
ainda mais com aquelas horas de sono malucas. A única coisa de que eu tinha certeza era que
não estava grávida, o que foi um alívio enorme. Se tivesse um filho de Adrian, os alquimistas
teriam poder ilimitado sobre mim. Mas só havia eu naquele corpo, e eu era capaz de suportar
qualquer coisa que eles fizessem contra mim. Fome, frio. Não importava. Não ia deixar que
me destruíssem.
— Você pensou sobre seus pecados, Sydney?
A voz feminina e metálica reverberou pela cela pequena, parecendo vir de todas as direções
ao mesmo tempo. Sentei, puxando a camisola áspera até o joelho. Era mais por força do hábito
do que qualquer outra coisa. Além de não ter manga, ela era tão fina que não esquentava nada.
Só me dava uma sensação psicológica de decência. Os alquimistas me deram a camisola após
algum tempo de cativeiro, dizendo que era um símbolo de boa vontade. Acho que na verdade
não conseguiam lidar comigo nua, ainda mais quando viram que não estava tendo o efeito
esperado.
— Eu dormi — respondi, contendo um bocejo. — Não tive tempo pra pensar. — A droga no
ar me mantinha sonolenta o tempo todo, mas eles também mandavam alguma espécie de
estimulante que garantia que eu ficasse acordada quando queriam, por mais exausta que estivesse. O resultado era que nunca me sentia descansada de verdade, o que era exatamente o
objetivo deles. Pressão psicológica funcionava melhor contra uma mente cansada.
— Você sonhou? — perguntou a voz. — Sonhou com a redenção? Sonhou com a sensação
de ver a luz outra vez?
— Você sabe que não. — Eu estava estranhamente falante. Eles viviam me fazendo essas
perguntas e normalmente eu não dizia nada. — Mas, se vocês pararem de me sedar, talvez eu
consiga dormir de verdade e ter sonhos pra contar.
Acima de tudo, se eu dormisse de verdade, livre das drogas, Adrian poderia me encontrar
nos meus sonhos e me ajudar a encontrar uma saída daquele buraco dos infernos.
Adrian.
Só o seu nome me fazia suportar aquelas horas longas e sombrias. Pensar nele, no nosso
passado e no nosso futuro, me ajudava a sobreviver ao presente. Era comum me perder em
devaneios, lembrando dos poucos meses que tivemos juntos. Foi tão pouco tempo mesmo?
Nada mais nos meus dezenove anos parecia tão vívido ou cheio de sentido quanto aquela
época. Eu passava os dias pensando nele. Revivia cada lembrança preciosa, as alegres e as
tristes, e, depois que as esgotava, fantasiava sobre o futuro. Vivia cada um dos cenários
possíveis que tínhamos imaginado para nós dois, todos os nossos “planos de fuga” bobos.
Adrian.
Ele era o motivo de eu sobreviver àquela prisão.
E também era o motivo de eu ter ido parar naquele lugar.
— Você não precisa que seu subconsciente diga o que seu consciente já sabe — a voz falou.
— Você é impura e maculada. Sua alma está envolta em trevas e você pecou contra os seus.
Soltei um suspiro diante daquela velha retórica e mudei de posição, tentando ficar mais
confortável, embora fosse uma batalha perdida. Fazia séculos que meus músculos estavam em
um estado constante de tensão. Não havia possibilidade de conforto naquele lugar.
— Deve ser triste para você — continuou a voz — saber que partiu o coração do seu pai.
Essa era uma técnica nova e me pegou tão de surpresa que retruquei sem pensar.
— Meu pai não tem coração.
— Ele tem, Sydney. Ele tem. — A menos que eu estivesse enganada, a voz parecia contente
por ter me feito falar. — Ele lamenta muito sua decadência. Ainda mais porque você era muito
promissora para nós e nossa luta contra o mal.
Me arrastei para trás até encostar na parede áspera.
— Bom, ele tem outra filha que é muito mais promissora agora, então estou certa de que vai
superar.
— Você partiu o coração dela também. Os dois estão sofrendo mais do que você pode
imaginar. Não seria bom se reconciliar com eles?
— Você está me oferecendo essa chance? — perguntei, desconfiada.
— Estamos te oferecendo essa chance desde o começo, Sydney. É só dizer as palavras
certas e ficaremos felizes em começar seu caminho rumo à redenção.
— Você está me dizendo que isto aqui ainda não é parte do caminho?
— Isto é parte do esforço para purificar sua alma.
— Certo — eu disse. — Purificar minha alma através da fome e da humilhação.
— Você quer ver sua família ou não? Não seria bom sentar com eles e conversar?
Não respondi; em vez disso, tentei descobrir qual era a jogada. A voz já tinha me oferecido
muitas coisas, a maioria itens de conforto: calor, uma cama macia, roupas de verdade.
Também haviam proposto outras recompensas, como a cruz de madeira que Adrian tinha feito
para mim e comida muito mais apetitosa do que o mingau com que vinham me mantendo viva.
Tentaram até me seduzir com o aroma de café pelo sistema de ventilação. Alguém,
provavelmente dessa família que se importava tanto comigo, devia ter contado minhas
preferências.
Mas isso… A chance de ver e falar com outras pessoas era outra história. Embora Zoe e
meu pai não estivessem exatamente no topo da lista de quem eu gostaria de ver no momento, o
que me interessou foram as implicações do que os alquimistas estavam oferecendo: uma vida
fora daquela cela.
— O que eu teria que fazer? — perguntei.
— Você sabe o que tem que fazer — a voz respondeu. — Admitir sua culpa. Confessar seus
pecados e dizer que está pronta para se redimir.
Quase disse: Não tenho nada para confessar. Era o que tinha dito centenas de vezes antes.
Talvez milhares. Mas estava intrigada. Se fosse encontrar outras pessoas, eles teriam de
desligar aquele veneno no ar, certo? E então eu poderia sonhar…
— É só dizer essas palavras que posso ver minha família?
A voz era tão condescendente que chegava a irritar.
— Claro que não imediatamente. Você precisa fazer por merecer. Mas poderá passar para o
próximo estágio da sua cura.
— Reeducação — eu disse.
— Seu tom faz parecer que é algo ruim — disse a voz. — Nós fazemos isso para ajudar
você.
— Não, obrigada — eu disse. — Estou me acostumando com este lugar. Seria uma pena sair
daqui agora.
Além disso, eu sabia que a verdadeira tortura começaria na reeducação. Claro, poderia não
esgotar tanto meu corpo quanto aquela cela escura, mas seria lá que eles se focariam no
controle mental. As condições penosas da cela eram apenas uma preparação, com o objetivo
de me deixar fraca e impotente para que estivesse suscetível quando tentassem mudar minha
mentalidade na reeducação. Para que agradecesse àqueles monstros pelo que fariam comigo.
Ainda assim, não conseguia deixar de pensar que, se saísse daquela cela, teria a chance de
dormir e sonhar normalmente. Se entrasse em contato com Adrian, tudo poderia mudar. No
mínimo, saberia que ele estava bem… se eu sobrevivesse à reeducação, claro. Podia
especular o tipo de manipulação psicológica que tentariam usar sobre mim, mas não dava para
ter certeza. Será que eu suportaria? Será que conseguiria manter a mente intacta, ou eles me
fariam ir contra todos os meus princípios e entes queridos? Era o risco de sair daquela cela.
Também sabia que os alquimistas possuíam drogas e técnicas para fazer seus comandos
“pegarem”, por assim dizer, e, embora fosse possível que eu estivesse protegida, graças ao
uso regular de magia antes de ter sido aprisionada, ainda tinha medo de estar vulnerável. O
único jeito seguro que conhecia de me proteger da compulsão alquimista era por meio de uma poção que eu já havia produzido e usado com bons resultados num amigo meu — mas não em
mim mesma.
Outras reflexões foram deixadas para depois quando senti um cansaço profundo. A essa
altura, já sabia que não dava para resistir e deitei no chão, permitindo que um sono pesado e
sem sonhos caísse sobre mim, sepultando as ideias de liberdade. Mas, antes que a droga me
derrubasse, disse o nome dele mentalmente, usando-o como um amuleto para me manter firme.
Adrian.
Um tempo indefinido depois, acordei e encontrei comida na cela. Era o mingau de sempre,
algum tipo de cereal quente de caixinha que devia ser fortificado com vitaminas e minerais
para, na medida do possível, me manter saudável. Mas chamar aquilo de “cereal quente” era
generosidade. “Morno” seria mais adequado. Eles o deixavam o mais insosso possível. Com
ou sem gosto, comi automaticamente, sabendo que precisava manter as forças para quando
saísse daquele lugar.
Se é que um dia vou sair daqui.
Esse pensamento traiçoeiro surgiu antes que eu pudesse impedir. Era um medo que vinha me
assombrando, a possibilidade de me manterem ali para sempre, de eu nunca mais ver as
pessoas que amava — Adrian, Eddie, Jill, ninguém. De nunca mais praticar magia. De nunca
mais ler um livro. Este último pensamento me atingiu com força porque, naquele dia, por mais
que os devaneios sobre Adrian me ajudassem a atravessar as horas sombrias, eu daria tudo
por algo tão mundano quanto um romance barato para ler. Aceitaria até uma revista ou um
panfleto. Qualquer coisa que não fosse a escuridão e aquela voz.
Seja forte, repeti para mim mesma. Seja forte por você. Seja forte por Adrian. Ele faria o
mesmo, não faria?
Sim, faria. Onde quer que estivesse, ainda em Palm Springs ou em outro lugar, eu sabia que
Adrian nunca desistiria de mim, e precisava estar à altura. Tinha que estar pronta para quando
estivéssemos juntos novamente. Tinha que estar pronta para o nosso reencontro.
Centrum permanebit. As palavras em latim ecoaram na minha cabeça, me dando forças.
Significavam “o centro vai aguentar” e eram inspiradas em um poema que Adrian tinha lido.
Nós somos o centro agora, pensei. E eu e ele vamos aguentar, custe o que custar.
Terminei a refeição miserável e fui me lavar na pequena pia no canto da cela, tateando o
caminho na escuridão até chegar ao lado do pequeno vaso sanitário. Um banho ou ducha de
verdade estavam fora de questão (embora eles já tivessem oferecido isso como recompensa) e
eu precisava me limpar diariamente (ou o que achava que era diariamente) com uma toalha de
rosto e água fria com cheiro de ferrugem. Era humilhante saber que eles estavam observando
com suas câmeras de visão noturna, mas ainda era mais digno do que ficar suja. Eu não daria
essa satisfação a eles. Continuaria sendo humana, embora estivessem me acusando justamente
do contrário.
Quando estava limpa o suficiente, voltei a me encolher na parede, batendo os dentes
enquanto a pele molhada tremia sob o ar frio. Será que algum dia me sentiria aquecida de
novo?
— Sydney, falamos com seu pai e sua irmã — a voz disse. — Eles ficaram tristes em saber
que você não queria vê-los. Zoe até chorou.
Fiz uma careta por dentro, me arrependendo de ter entrado no jogo deles da última vez.
Agora a voz achava que chantagem familiar exercia algum efeito sobre mim. Como eles
podiam achar que eu gostaria de ver as pessoas que haviam me trancado naquele lugar? Os
únicos membros da minha família com quem eu queria falar — minha mãe e minha irmã mais
velha — não deviam estar na lista de visitas, ainda mais se meu pai tivesse vencido o
divórcio. Esse resultado era algo que eu queria saber, mas não ia revelar meu interesse.
— Você não se arrepende da dor que causou a eles? — perguntou a voz.
— Acho que são eles que deviam se arrepender da dor que me causaram — retruquei.
— Eles não queriam te causar nenhuma dor. — A voz parecia estar tentando me consolar,
mas eu só queria socar quem estivesse por trás dela, e olha que não sou uma pessoa violenta.
— Eles fizeram o que fizeram para te ajudar. É tudo que estamos tentando fazer. Eles
adorariam ter a chance de conversar com você e se explicar.
— Aposto que sim — murmurei. — Se é que vocês falaram com eles. — Eu estava me
odiando por manter uma conversa com meus captores. Fazia tempo que não falava tanto. Eles
deviam estar adorando.
— Zoe perguntou se pode trazer um latte de baunilha light pra você quando vier. Dissemos
que sim. Tudo que queremos é uma visita civilizada, para vocês sentarem e terem uma
conversa sincera, que cure sua família e especialmente sua alma.
Meu coração bateu mais rápido, e não era pela promessa do café. A voz estava confirmando
o que já tinha sugerido antes. Uma visita de verdade, sentar, tomar café… aquilo só poderia
acontecer fora da minha cela. Se a oferta fosse real, eles nunca trariam meu pai e Zoe para
aquele lugar — não que meu objetivo fosse vê-los. O que eu queria era sair dali. Ainda
acreditava que era capaz de ficar lá para sempre, de suportar o que quer que eles fizessem
contra mim. E era. Mas o que estava conseguindo com isso? Só provava que eu era durona e
rebelde, e, por mais que me orgulhasse dessas coisas, elas não estavam me levando para perto
de Adrian. Nem de Adrian, nem de nenhum dos meus amigos. Eu precisava sonhar. Para
sonhar, precisava me livrar da sedação contínua.
E não era só isso. Se saísse daquela cela pequena e escura, talvez conseguisse praticar
magia. Talvez descobrisse para qual parte do mundo tinham me levado. Talvez pudesse me
libertar.
Mas primeiro precisava sair daquela cela. Eu tinha pensado que ficar ali fosse um ato de
bravura, mas, de repente, suspeitei que sair fosse o verdadeiro teste de coragem.
— O que você acha, Sydney? — A voz parecia entusiasmada, quase ansiosa, o que
contrastava com o tom altivo e imperioso a que eu havia me acostumado. Eles nunca tinham
despertado meu interesse antes. — Gostaria de dar seus primeiros passos para limpar sua
alma… e ver sua família?
Há quanto tempo eu definhava naquela cela, entrando e saindo desse estado de consciência
perturbado? Ao tocar o torso e os braços, notei que tinha perdido bastante peso, o tipo de
perda que levava semanas. Semanas, meses… eu não fazia ideia. E, enquanto estava ali, o
mundo continuava dando voltas, um mundo cheio de gente que precisava de mim.
— Sydney?
Não querendo parecer muito ansiosa, tentei me esquivar.
— Como sei que posso confiar em vocês? Que vão me deixar ver minha família se eu…
começar essa jornada?
— O mal e a mentira não fazem parte do nosso caminho — disse a voz. — Somos adeptos
da luz e da honestidade.
Mentirosos, pensei. Fazia anos que eles mentiam para mim, dizendo que pessoas boas eram
monstros e tentando ditar como eu deveria seguir a minha vida. Mas não importava. Só
precisava que mantivessem a palavra em relação à minha família.
— Vou ter… uma cama de verdade? — Consegui deixar a voz embargada. Os alquimistas
tinham me ensinado a ser uma excelente atriz e, agora, veriam seu treinamento em ação.
— Sim, Sydney. Uma cama de verdade, roupas de verdade, comida de verdade. E pessoas
com quem conversar… pessoas que vão te ajudar se você ouvir.
Essa última parte fechou o acordo. Se fossem me manter perto de outras pessoas
regularmente, não poderiam mais drogar o ar. Naquele momento, senti que ficava mais alerta e
agitada. Eles estavam mandando o estimulante pelo sistema de ventilação, e a droga me
deixava ansiosa, querendo tomar decisões por impulso. Era um bom recurso sobre uma mente
cansada e estava funcionando — só não do jeito como eles queriam.
Por hábito, levei a mão à clavícula, tocando uma cruz que não estava mais lá. Não deixe que
eles me mudem, orei em silêncio. Permita que eu mantenha minha sanidade. Permita que eu
suporte o que está por vir, seja lá o que for.
— Sydney?
— O que preciso fazer? — perguntei.
— Você sabe o que precisa fazer — a voz respondeu. — Sabe o que precisa dizer.
Levei a mão ao peito e as palavras agora não eram uma oração, mas uma mensagem
silenciosa para Adrian: Espere por mim. Seja forte e também serei. Vou lutar e resistir a
tudo que me aguarda. Não vou te esquecer. Nunca vou te abandonar, apesar de todas as
mentiras que terei de contar a eles. Nosso centro vai aguentar.
— Você sabe o que precisa dizer — a voz repetiu. Ela estava quase salivando.
Limpei a garganta.
— Pequei contras os meus e deixei minha alma ser corrompida. Estou pronta para expurgar
essa escuridão.
— E quais foram os seus pecados? — a voz perguntou. — Confesse o que você fez.
Isso era mais difícil, mas consegui encontrar as palavras. Para chegar mais perto de Adrian
e da liberdade, eu era capaz de falar qualquer coisa.
Respirei fundo e disse:
— Me apaixonei por um vampiro.
E, de repente, fui cegada pela luz.

Blodlines Sombras PrateadasWhere stories live. Discover now