17 Sydney

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DEMOREI UM TEMPO PARA ENTENDER que aquele barulho era o alarme de incêndio, não uma nova técnica de tortura.
Ao contrário do período de reflexão, quando os alquimistas abusavam de seu poder de nos
fazer dormir quando bem entendessem, no andar da persuasão eles preferiam nos manter acordados. A estudiosa dentro de mim, que se lembrava vagamente de ter lido artigos sobre
técnicas de tortura e interrogatório, entendia o porquê. Quanto menos descanso a pessoa tivesse, maiores eram as chances de falar algo que não pretendia. Na reflexão e mesmo no dia
a dia com os outros detentos, eu nunca me sentia completamente descansada, mas aquilo por
que vinha passando agora era muito pior.
Quando não estava sendo torturada e ouvindo as mesmas perguntas sem parar, era sujeitada
a uma luz cegante e barulhos irritantes para garantir que não tivesse nenhum tipo de repouso
real. Não havia necessidade do gás para me impedir de sonhar; eu nunca chegava perto o
bastante do sono profundo para que isso fosse necessário. Logo perdi a noção do tempo
novamente, e mesmo as refeições irregulares (de novo aquele mingau morno) e as pausas para
o banheiro não ajudavam muito com isso.
Por mais excruciante que fosse a experiência, estava aguentando firme. Mantive a história
de que estivera procurando uma saída na noite em que fui pega e me recusei a contar desde
quando vinha praticando magia ou quem havia me ensinado. Era improvável que eles fizessem
alguma coisa contra a sra. Terwilliger, mas não a colocaria em risco. Preferia deixar que me
partissem ao meio a pronunciar o nome dela.
Quando o alarme soou e a pequena luz estroboscópica acendeu no canto do quarto, fui
arrancada do frágil estado entorpecido em que estava. Essas horas eram raras e fiquei triste
por terem acabado, ainda mais porque sabia o que estava por vir. Exceto a luz do alarme, a
sala estava na escuridão absoluta, então não fazia ideia de quantas pessoas estavam lá até
ouvir um homem falando num telefone ou rádio. Seu nome era Grayson e ele era minha
companhia constante nas sessões de tortura e interrogatório, isso quando Sheridan não as
executava pessoalmente.
— Alô? — ele disse. — Aqui é Grayson no P2. Tem alguém aí? Isso é uma simulação?
Não ouvi se ele obteve resposta. Depois de mais algumas tentativas, ele começou a mexer
na porta, como se estivesse tentando abri-la.
— Alguma coisa não está indo de acordo com os planos alquimistas? — perguntei. Não sabia se ele tinha me ouvido por conta do barulho, ainda mais porque não tinha forças para
falar muito alto. Mas então o ouvi bem ao meu lado.
— Cale a boca — ele mandou. — E reze pra conseguirmos sair daqui. Não que eu ache que
suas orações vão funcionar.
A tensão em sua voz revelou mais do que suas palavras e me esforcei para fazer meu
cérebro aturdido se concentrar e avaliar a situação. O que quer que estivesse acontecendo
definitivamente não fazia parte de nenhum plano e os alquimistas odiavam quando alguma
coisa dava errado. A pergunta era: aquilo era ou não uma vantagem para mim? Tudo era tão
controlado na reeducação que seria preciso algo extraordinário para pegá-los de surpresa… e
Adrian era a pessoa mais extraordinária que eu conhecia.
Depois que Grayson tentou se comunicar com o lado de fora mais algumas vezes, tomei
coragem para perguntar:
— Realmente tem um incêndio?
Outros pontos de luz irritantes se acenderam, um iluminando Grayson e o outro bem em cima
dos meus olhos.
— É bem provável. E, se tiver, é bem provável que a gente morra aqui — ele disse. Dava
para ver o suor na testa dele e havia uma leve apreensão na sua voz, apesar do discurso frio.
Ao notar meu olhar fixo e perceber que eu tinha visto sua fraqueza, ele fechou a cara. — Vai
saber? Talvez nas chamas sua alma seja finalmente expurgada das…
Um estalo na porta precedeu sua abertura, e Grayson se virou, surpreso, interrompendo o
discurso. Não conseguia ver o rosto dele, mas bem que queria ter visto quando ouvi uma voz
conhecida.
— Sydney?
Meu coração pulou e uma esperança que eu não sentia havia muito tempo encheu meu
coração.
— Adrian?
Essa esperança se dissipou imediatamente e, no lugar dela, senti a desconfiança nascida
durante todas aquelas semanas de paranoia. Era um truque! Só podia ser um truque. Eu havia
perdido contato com Adrian. Não havia como ter me encontrado tão cedo. Não havia como ter
entrado ali. Devia ser mais um dos muitos truques alquimistas para tentar mexer com a minha
cabeça… no entanto, quando ouvi sua voz novamente, tive certeza de que era ele.
— Que diabos vocês fizeram com ela?
Queria ver seu rosto, mas as amarras não permitiam. O que vi foi Grayson sacar o que
parecia uma arma e apontá-la para a porta. Isso foi tudo que ele fez antes de a arma
literalmente sair voando da sua mão e cair do outro lado da sala. Ele abriu a boca, incrédulo.
— Que obra do demônio é…
Alguém que parecia muito com Eddie entrou com tudo na sala escura, nocauteando Grayson.
Os dois saíram do meu campo de visão, que, de repente, foi ocupado com a imagem mais linda
que eu poderia imaginar: Adrian.
Por alguns segundos, a dúvida se aquilo era apenas mais uma ilusão produzida pelos
alquimistas voltou a me atormentar. Mas não, ali estava ele, na minha frente. Adrian. Meu
Adrian, olhando para mim com seus olhos verdes penetrantes. Senti uma dor no peito enquanto as emoções tomavam conta de mim. Adrian estava ali, e procurei algo para dizer, algum jeito
de transmitir todo o amor e esperança e medo que vinham se acumulando dentro de mim
nesses últimos meses.
— Você está de terno? — perguntei finalmente, com a voz embargada. — Não precisava se
arrumar tanto pra mim.
— Quieta, Sage — ele disse. — Quem faz as piadas nas missões de resgate sou eu. — Seus
olhos calorosos e cheios de amor encararam os meus por um momento, e achei que iria
derreter. Então, eles se estreitaram ao ver as várias amarras me prendendo. — Céus, o que é
isso? Alguma coisa da Idade Média? Precisa de chave? — Enquanto isso, ao fundo, Eddie e
Grayson continuavam se atracando.
— Nunca vi os alquimistas usarem uma — respondi.
Ele precisou de algumas tentativas, mas finalmente descobriu como desfazer uma das
amarras. Quando pegou o jeito, desfez as outras rapidamente e eu estava livre. Com cuidado,
Adrian me ajudou a sentar, bem a tempo de ver Eddie prendendo Grayson no chão sob um dos
pontos de luz. Eddie apontou a arma para a nuca dele, o que me surpreendeu a princípio, mas,
mesmo sob a luz fraca, pude ver que havia algo de diferente naquela arma.
— Levante — Eddie disse, saindo de cima do alquimista. — Devagar. E ponha as mãos na
cabeça.
— Prefiro morrer nas chamas a ser prisioneiro de uma criatura do inferno! — Grayson
retorquiu, embora estivesse obedecendo.
— Relaxa, a gente não vai te levar como prisioneiro — Adrian disse. — Vamos salvar sua
pele pra você ficar junto com seus coleguinhas.
Eddie olhou ao redor.
— Acha que tem algum tipo de corda pra amarrar os braços dele aqui?
— Tenho certeza — respondi. Comecei a sair da mesa, mas senti uma tontura repentina. Me
voltei para Adrian. — Dê uma olhada naquele lado da sala. É lá que ficam os materiais.
Adrian foi correndo e primeiro encontrou algo igualmente útil: um interruptor que acendeu
todas as lâmpadas da sala. A luz me fez estreitar os olhos depois de tanto tempo na escuridão,
mas a maior visibilidade permitiu que ele encontrasse logo as prateleiras de equipamentos,
incluindo amarras, que usou em Grayson. Vários controles e substâncias químicas também
estavam nas prateleiras, além de cadeiras e óculos de visão noturna para os outros alquimistas
poderem assistir ao show de tortura quando as luzes estavam apagadas. Ver aquilo me deu
nojo e precisei desviar os olhos.
— Consegue andar? — Adrian perguntou.
— Vou conseguir — respondi.
Ele pôs um braço ao meu redor e minhas pernas ameaçaram ceder. Ele parecia estar
compartilhando suas forças, físicas e mentais, comigo e, com a sua ajuda, fui avançando
devagar para fora da sala. Eddie foi à nossa frente, empurrando Grayson num ritmo mais
rápido. Quando chegamos ao corredor, os alarmes estavam disparados mas não havia sinal de
incêndio. Eddie se voltou para o prisioneiro.
— Qual é o outro quarto ocupado? — Como Grayson não respondeu, Eddie se aproximou
dele, furioso. — Fala logo, cara! A gente está tentando salvar seu colega.
— Prefiro morrer a renunciar à minha obrigação ou pedir sua ajuda — Grayson rosnou.
Eddie suspirou e entregou a arma para Adrian.
— Aponte pra ele enquanto eu olho os outros quartos.
Tinha quase certeza de que Adrian nunca havia usado nenhum tipo de arma na vida, mas ele
conseguiu parecer convincente enquanto apontava aquela para Grayson. Me recostei na parede
e fiquei olhando enquanto Eddie passava o crachá em cada porta, abria e olhava do lado de
dentro. Na terceira, o vi pular para dentro do quarto. Não dava para ver o que estava
acontecendo, mas ouvi os sons de uma briga.
Adrian me encarou, franzindo a testa enquanto me examinava mais de perto. Todas as
melhoras que eu tivera depois de sair da solitária deviam ter se revertido com o novo
cativeiro.
— Você não estava me falando a verdade. Todas as vezes que perguntei o que estavam
fazendo com você…
— Eu não menti — eu disse, desviando o olhar.
— Simplesmente não contou — ele disse. — Quando foi a última vez que comeu?
Fui poupada de responder quando Eddie saiu apontando uma arma para outro alquimista.
Dessa vez, era uma arma de verdade, então imaginei que ele a havia tirado do guarda.
— Amarre esse cara — Eddie falou para Adrian — e solte a menina lá dentro já que você é
bom nisso. Não consegui entender como funciona.
Dei um aceno encorajador para Adrian, que parecia não querer me deixar sozinha. Depois
de amarrar o segundo alquimista, Adrian desapareceu dentro do quarto. Olhei de soslaio para
Eddie.
— Tem certeza de que não tem nenhum incêndio? Os alarmes ainda estão disparados.
— Ah, tem um incêndio sim — Eddie disse. — A gente só estava torcendo pra não chegar
aqui porque está alguns andares acima. Pelo menos, estava.
Revirei suas palavras na cabeça para ter certeza de que havia entendido e não estava só
alucinando no meu estado miserável. Tinha quase certeza de que sentia cheiro de fumaça, mas
podia ser só a minha imaginação. Um minuto depois, Adrian saiu do quarto apoiando uma
garota um pouco mais velha do que eu, que estava usando o mesmo uniforme cáqui. Meu
primeiro pensamento foi: Estou tão mal assim? Não, concluí, de jeito nenhum. Estava mal, eu
sabia, mas algo me dizia que ela estava lá havia muito, muito mais tempo do que eu. Seu rosto
estava descarnado e pálido apesar da pele morena. Seu uniforme devia ser um número maior,
o que sugeria que ela tinha perdido um peso considerável desde que o vestira, e seu cabelo
preto estava precisando de uma boa lavagem e de um bom corte. Sua aparência lembrava a
minha quando saí da solitária, só que dez vezes pior. Eu não tinha ficado nesse andar por tanto
tempo e tinha a vantagem de ter dormido e me alimentado nas últimas semanas.
O rosto de Eddie se encheu de compaixão, mas seu caráter prático logo tomou conta.
— Vamos. Consegue ajudar as duas?
Me desencostei da parede e fiz sinal de que não precisava.
— Ajude a garota. Consigo andar devagar.
Adrian pareceu em dúvida, mas era óbvio que a garota precisava mais dele do que eu.
Andei ao lado dela enquanto nosso grupo estranho atravessava o corredor e me peguei tentando tranquilizá-la sobre uma situação da qual não sabia nada.
— Está tudo bem — eu disse. — Vai ficar tudo bem. Vamos tirar você daqui. Como você se
chama?
Seus olhos escuros e vazios continuavam encarando o nada. Talvez ela tivesse sobrevivido
à tortura por tanto tempo desligando o som de vozes humanas.
— Ch-Chantal — ela disse. Sua voz era um murmúrio e eu não teria conseguido ouvir sobre
o alarme se não estivesse tão perto dela.
— Chantal… — eu disse, sem fôlego. — Acho que conheço você. Quer dizer, sei quem
você é. Conheço Duncan. Ele é meu amigo.
Uma chama minúscula, quase imperceptível, de vida surgiu em seus olhos.
— Duncan? Duncan está aqui?
— Sim, ele está esperando por nós. — Olhei para Adrian enquanto falava e ele confirmou
com a cabeça, me dando ânimo. — Você vai se encontrar com ele em breve. Ele vai ficar
muito feliz em te ver. Sentiu muito a sua falta. Não fazia ideia de que você estava aqui esse
tempo todo.
Senti um arrepio ao ouvir minhas próprias palavras. Esse tempo todo. Duncan dissera que
os alquimistas a tinham levado um ano antes. Será que ela ficara na área de “persuasão” por
todo esse tempo? Era horrível. Não era à toa que estava daquele jeito. No entanto, o fato de
que tinha sobrevivido à tortura e, pelo jeito, ainda representava ameaça suficiente para
continuar trancada revelava muito sobre seu caráter. Talvez nós duas devêssemos nos sentir
lisonjeadas de estar naquele clubinho exclusivo.
Eddie nos levou para a escada. O ar parecia limpo até abrirmos a porta e entrarmos no
andar das solitárias. Fomos atingidos por uma parede de fumaça, densa e nociva, bloqueando
o caminho até o centro de controle onde ficava a saída. Ele franziu a testa.
— Não esperava que fosse descer tão rápido, ainda mais se não está na escada.
Nenhum de nós falou nada, sem saber o que fazer. Foi uma surpresa quando Chantal foi a
primeira a comentar.
— Veio pelo sistema de ventilação — ela murmurou. — Onde é o incêndio?
— No andar dos prisioneiros — Adrian respondeu.
Ela franziu a testa, pensativa, e parecia estar ganhando vida a cada segundo que passava.
— Então deve ser só fumaça. Claro… eu não devia dizer “só”. As pessoas costumam pensar
que só o fogo é perigoso, mas estão erradas: a fumaça é tão letal quanto.
— Você é mesmo uma alquimista — Adrian disse, abrindo um sorriso que se desfez quando
a fumaça foi soprada para perto dele. Ele começou a tossir.
Dei um passo à frente, ainda sem firmeza, mas relutante a fazer menos do que meus amigos
tinham feito por mim. Não muito tempo antes, realizara feitiços de invisibilidade e
encantamentos elementais… mas aquilo tinha sido depois de semanas de repouso moderado e
uma dieta aceitável. Será que conseguiria fazer o que queria agora, tão fragilizada
fisicamente? Mais uma vez, não tinha nenhum componente de feitiço para me ajudar com a
magia. Tudo dependia da intenção e das palavras. Lembrando da invocação do ar que tinha
feito para a tinta de sal, usei esse elemento agora e ergui o braço. Uma brisa muito leve saiu
da minha mão e, aos poucos, começou a afastar a fumaça de nós. Era um processo delicado, visto que não me atrevi a invocar nada mais forte para não alimentar nenhuma brasa invisível.
Foi também muito mais cansativo do que imaginava. Antes de chegar ao meio do caminho,
minhas pernas começaram a tremer e precisei usar a outra mão para me apoiar na parede. Os
dois alquimistas me olhavam com repulsa e provavelmente teriam feito o sinal contra o mal se
não estivessem com as mãos atadas.
Finalmente a fumaça foi afastada, abrindo caminho até a sala de controle. Adrian ignorou
quando eu disse que estava bem e me segurou com um braço, enquanto continuava apoiando
Chantal com o outro. Eddie parecia querer ajudar mas não se atreveu a baixar a guarda diante
dos dois alquimistas amarrados. Ele mandou que os dois entrassem na sala e, depois,
atravessassem a misteriosa porta que eu tinha visto na minha investigação noturna. Outra
escada nos levou para cima…
… e vi a luz do sol pela primeira vez em quatro meses.
Fiquei tão extasiada que parei de andar, fazendo Adrian tropeçar. Do outro lado dele, os
olhos de Chantal estavam igualmente arregalados enquanto ela também contemplava a luz que
entrava pela pequena janela da sala. Tons de dourado e laranja sugeriam que era quase pôr do
sol.
— É linda — murmurei.
— Concordo — Adrian disse, e vi que seus olhos estavam pousados em mim.
Abri um sorriso, querendo dizer mais, mas a sala também estava repleta de outras
preocupações — como todos os alquimistas da reeducação em um canto, sendo vigiados por
Marcus, Trey e outro cara.
— Cadê todo mundo? — Eddie perguntou.
— Cadê Duncan? — Chantal perguntou.
— Mandei Sheila levar todos pro abrigo — Marcus disse. — Achei que seria melhor tirar
todo mundo daqui. — Ele abriu um de seus sorrisos de estrela de cinema. — É bom ver você
ao vivo, Sydney. — Apesar do sorriso luminoso, notei uma faísca de raiva em seus olhos.
Assim como Adrian, ele também havia notado minha aparência destruída.
— Abrigo? — Sheridan murmurou, furiosa. Eu não a tinha notado antes. — Realmente
acham que existe algum lugar seguro onde não vamos…
Suas ameaças foram interrompidas quando Chantal se soltou de Adrian aos berros e tentou
atacar Sheridan.
— Você! — Chantal gritou. — Você fez isso comigo! Sempre foi você, não importava quem
estivesse fazendo. Era você quem dava as ordens! — Havia um desespero animal nela e senti
uma pontada no peito, me perguntando se aquela seria eu se tivesse ficado trancada por tanto
tempo.
Seu ataque não durou muito, pois os outros alquimistas cercaram Sheridan para protegê-la.
Corri para a frente, ainda fraca, e tentei puxar Chantal de volta o mais suavemente possível.
— Acabou — eu disse. — Deixe para lá.
— Você sabe o que ela fez! — O ódio e a dor no rosto de Chantal refletiam algumas das
emoções mais sombrias dentro de mim, as quais ainda não havia exprimido. — Você sabe
como ela é um monstro!
— Nós não somos os monstros neste mundo — Sheridan murmurou. — Estamos lutando contra eles e você traiu sua própria espécie.
Chantal avançou novamente e, dessa vez, Adrian me ajudou a segurá-la.
— Acabou — insisti. — Ela não pode te machucar mais.
— É isso que você pensa, Sydney? — Um olhar de desprezo desfigurou o rosto delicado de
Sheridan. — Realmente acha que vai sair impune disso tudo? Você não tem pra onde ir.
Nenhum de vocês tem pra onde ir, muito menos você, Sydney. Isso é tudo culpa sua e nenhum
alquimista vai descansar até…
Novamente, seu momento dramático foi interrompido, dessa vez quando os alarmes de
incêndio se calaram e o sistema de sprinklers foi ligado.
— Ora, ora — disse Marcus, enquanto éramos todos banhados pela água. — Acho que Grif
conseguiu consertar.
— A gente devia dar o fora daqui — disse um ex-alquimista que eu não conhecia. —
Mesmo se os reforços deles estiverem a quilômetros de distância, é possível que alguém tenha
feito uma ligação.
Marcus concordou com a cabeça.
— Vamos só cuidar para que todos fiquem presos.
— Aqui — Adrian disse. Ele esvaziou o bolso do paletó, onde havia dezenas de amarras.
— Pensei que algumas a mais poderiam ser úteis.
Trey e o colega de Marcus amarraram os alquimistas, enquanto o próprio Marcus coletava
todas as armas que conseguia encontrar.
— Eu é que não vou deixar tudo isso aqui. Vamos levar e destruir todas. — Ele examinou o
trabalho de sua equipe e assentiu. — Vamos embora.
Me virei para seguir, mas a voz de Sheridan me fez parar.
— Você não tem pra onde ir! — ela gritou. — Você não vai sair impune!
Olhei para trás, mas, antes de responder, um objeto pequeno chamou minha atenção. Na
briga com Chantal, dois botões da camisa de Sheridan tinham se aberto. Avancei a passos
largos e ergui a mão, fazendo-a se encolher. Ela obviamente pensou que eu iria lançar algum
feitiço contra ela. Em vez disso, arranquei o colar de Adrian de seu pescoço.
— Isso — eu disse — é meu.
— Você não merece isso — ela murmurou, furiosa. — Não pense que está segura. Você
acaba de substituir Marcus Finch e se tornar a alquimista mais procurada.
Não respondi e simplesmente pus a cruz no pescoço. Em seguida, dei as costas para ela e
segui meus amigos sem olhar para trás.
Mesmo se pondo, o sol estava escaldante lá fora e nossas roupas molhadas se tornaram uma
bênção inesperada.
— Onde estamos? — perguntei.
— No Vale da Morte — Marcus respondeu. — Não podemos negar que os alquimistas têm
jeito pro drama.
— Ou o terreno era barato — eu disse.
Trey me surpreendeu me envolvendo de repente num abraço apertado.
— Não faz ideia de como senti sua falta, Melbourne.
Senti meus olhos se encherem de lágrimas.
— Também senti a sua. Obrigada… obrigada por isso. Não sei como agradecer.
— Não precisa agradecer. — Ele franziu a testa enquanto me olhava da cabeça aos pés. —
Exceto talvez descansando bastante e arranjando alguma coisa pra comer.
Outro abraço me envolveu e Marcus tomou o lugar dele.
— Quem você pensa que é? — ele disse, com um sorriso largo. — Me substituindo na lista
de procurados?
Retribuí o sorriso, escondendo como as palavras de Sheridan haviam me aterrorizado.
— Obrigada, Marcus. Desculpe por ter dito que você só fala e não age. — Apontei para a
nossa volta. — Essa… essa é uma ação e tanto.
— Bom, você foi uma grande inspiração para mim e para os outros — ele disse. — E
provavelmente pro grupo que a gente tirou daquele lugar também.
Eddie foi o último a sair e, enquanto olhávamos um para o outro, as lágrimas finalmente
jorraram dos meus olhos.
— Eddie, desculpe por ter mentido pra você naquela noite.
Ele balançou a cabeça e me puxou para perto. Sua voz estava embargada.
— Desculpe por não ter impedido que te levassem. Desculpe por não ter sido proteção
suficiente.
— Ai, Eddie — eu disse, fungando. — Você é a melhor proteção. Ninguém poderia ter um
guardião melhor que você. Nem um amigo melhor.
Até Marcus pareceu comovido.
— Odeio interromper, mas a gente precisa dar o fora daqui. Podemos rir e chorar no ponto
de encontro.
Limpei os olhos e dei um último abraço rápido em Eddie.
— Me faça um favor — eu disse para ele. — Volte pra Jill.
— Claro — ele disse. — Vou voltar assim que todo mundo estiver em segurança. É meu
dever.
— Não estou falando pra voltar porque é seu dever. Volte porque ela é o seu verdadeiro
amor.
Seu queixo quase caiu. Acho que ninguém nunca tinha falado com ele sobre isso
diretamente, mas, depois de tudo por que eu tinha passado, ficar fazendo rodeios parecia uma
perda de tempo. Dei um passo para trás para ficar perto de Adrian e o rapaz chamado Grif
ergueu um chaveiro.
— Aproveitei pra trazer o Mustang pra cá. Quem vai nele?
— A gente — eu disse, surpreendendo a todos. Peguei as chaves da sua mão. — Quer
dizer… vocês têm outro carro?
— Um Prius — Adrian disse, com uma careta.
Fiz uma contagem mental, verificando que todos caberiam e, em seguida, abri o que
esperava ser um sorriso apaixonado.
— Tudo bem se Adrian e eu formos no Mustang e encontrarmos vocês lá? Eu… queria ficar
sozinha com ele um pouco.
— Minha perna não cabe naquele carro — Trey reclamou. Então viu minha expressão e seu
rosto se suavizou. — Mas longe de mim ficar no caminho do amor verdadeiro. Vou sofrer pelo bem da sua felicidade, Melbourne. Como sempre.
Adrian pegou uma mochila do Prius e deu as chaves para Marcus. Em troca, Marcus me
presenteou com algo inesperado.
— Mandei fazer isso um tempo atrás — ele explicou. — Já fique com elas, por via das
dúvidas. Vou fazer para os outros detentos também.
Ele me entregou duas carteiras de motorista. Uma era a minha original de Utah, que eu quase
nunca usava em Palm Springs vivendo como Sydney Melrose. Fiquei surpresa por ele ter
conseguido pegar uma cópia com o departamento de trânsito. Mas isso não me espantou tanto
quanto a segunda carteira, uma falsa de Maryland com um codinome inesperado.
— Sério? — perguntei. — Misty Steele?
Marcus encolheu os ombros.
— Foi sugestão de Adrian.
— É o nome de uma garota durona — Adrian insistiu.
Dei um abraço rápido de agradecimento em Marcus. Uma coisa que havia aprendido entre
os alquimistas era que, para se esconder no mundo moderno, documentos de identidade eram
fundamentais. Era difícil encontrar bons documentos falsos, mas o trabalho feito no de Misty
Steele era impecável. Marcus e os outros entraram no outro carro, e Eddie me lançou um
último sorriso de despedida que quase me fez chorar de novo.
— Nunca pensei que veria Castile chorar — Adrian disse, dando partida no Mustang. —
Ele ficou bem comovido com essa história toda. Quer dizer, todo mundo ficou, mas ele se
sentiu muito culpado. Nunca se perdoou por deixar você ser levada.
— Tomara que consiga agora — eu disse, colocando o cinto de segurança. — Porque vai
acontecer de novo. Nós não vamos com eles pro abrigo.

Blodlines Sombras PrateadasWhere stories live. Discover now