Escapaste

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Escapaste-me por entre os dedos. Cheguei a casa, uma noite, e tu já havias desaparecido faziam horas. Já te tinha perdido. Aliás, já te tinha perdido antes de me ter apercebido. Um mês? Dois? Talvez três. Se calhar nunca foste meu.

Acreditei que havíamos construído um mundo nosso, de onde nenhum de nós algum dia sentiria a necessidade de sair. Aos meus olhos, era um Universo maravilhoso, inundado de toda a irracionalidade e rebeldia do amor adolescente. Enveredámos por caminhos proibidos e observámos ilusões que nos comeram vivos. Abandonávamos e retornávamos à realidade demasiado frequentemente, sempre de mãos dados e corações abraçados. Toxicamente, essa linha que juntos criámos uniu-nos. Entreajudávamo-nos quando o real ou o imaginário se tornava assustador demais.

Fiz de ti a minha casa. Os nossos sonhos complementavam-se. Possuíamos os mesmos objetivos – isto, claro, quando as minhas metas ainda eram delineadas por mim. Tornei-te em tudo aquilo que me faltava, tudo aquilo que pretendia atingir na minha existência. Entrei no teu mundo e fiz dele o meu. Perdi a essência de ser a minha própria pessoa para me tornar a tua pessoa. E, com uma mensagem, com uma frieza e insignificância cruel, deixaste-me presa numa divisão dominada pela escuridão. Enganaste-me. Envolveste-me num amor que há muito sabias já não ser real e encenaste um teatro tão bom que me fez crer que o enredo era fiável.

Desde que entraste naquela bomba de gasolina, naquela madrugada, o meu coração bate por ti. Foi um dos dias mais memoráveis que já experienciei. A tua aura era, é, e gosto de acreditar que sempre será, limpa. A tua alma era linda e o teu espírito repleto de energias positivas. Estilhaça-me pensar que jamais te poderia beijar, tocar, sentir, cheirar. Jamais poderia contar-te acerca do meu dia e das coisas insignificantes que me fizeram pensar nos teus maravilhosos olhos azuis. Jamais poderei passear pelo Universo pueril que deixámos que fosse criado.

Deixaste-me para trás com promessas vazias e perguntas sem resposta. Deixaste-me para trás sem onde me agarrar, porque foi em ti que depositei tudo aquilo que fazia parte de mim e tudo aquilo que não fazia. Deixaste-me para trás sem vontade de ver o que vem a seguir.

Todas as noites sonho contigo. Sempre o mesmo sonho, sempre o mesmo desfecho. E todas as manhãs acordo a chorar porque sou obrigada a encarar que te deixei escapar. Talvez esteja melhor assim, talvez precisasse de abandonar a ilusão e regressar finalmente à realidade. Mas eu não queria, não estava pronta porque não quis crer que poderia acontecer. A realidade paralela em que nos deixámos embrulhar era onde eu escolhia – e onde escolherei, durante tempo incontável – residir até ao fim dos meus dias.


O Acto de SerWhere stories live. Discover now