O Velho - Parte 1

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A noite já ia alta quando o velho me contou sua estranha história.

Ele foi encontrado inconsciente perto da floresta da Tijuca e trazido para cá com o corpo coberto de arranhões e hematomas. Estava completamente imundo, os cabelos grisalhos quase castanhos, tamanha a quantidade de terra em seu corpo. Parecia que esteve enterrado durante muito tempo e que agora, finalmente, a vida voltava a lhe soprar ar nos pulmões. No entanto, se porventura ele havia voltado da mansão dos mortos, este retorno seria muito breve: alguns ferimentos eram profundos e outros já estavam infeccionando. A idade avançada também não contribuía para melhorar o quadro do moribundo. Eu, médico com bons 25 anos de experiência, calculei que aquela pobre criatura não passaria do amanhecer. A aurora marcaria o crepúsculo de sua alma entre nós. Fiz o que pude, mas não havia jeito de salvá-lo. Só restava esperar que suas forças se exaurissem e ele expirasse; provavelmente morreria sem recobrar a consciência. Deixei-o e fui cuidar de outros pacientes. Era dia do meu plantão e já calculava uma longa noite de trabalho pela frente.

Por volta das 2 horas, o hospital estava imerso no mais completo silêncio. Enganara-me na minha previsão de que teria muito trabalho; de fato, tivemos um número estranhamente pequeno de ocorrências. Desse modo, consegui atender os pacientes com mais precisão e tranqüilidade. Dias como esse são raros em hospitais públicos. Normalmente, apenas dois médicos e quatro enfermeiras ficavam de plantão. Pela primeira vez, foi o bastante para atender a demanda de enfermos.

Para se franco, a calmaria anormal daquela noite me deixou entediado. Estou acostumado com madrugadas frenéticas e cansativas, pessoas chegando a cada minuto, vítimas dos mais diversos males: ossos expostos, pernas dilaceradas, membros decepados, cabeças deformadas, ferimentos dos mais grotescos imagináveis. Além disso, há ainda aquelas doenças dolorosas, que fazem a pessoa se retorcer e uivar na mais pura agonia. Eu poderia preencher esse relato apenas com o que já presenciei nos meus anos de medicina. Devo confessar, porém, que o tempo me anestesiou contra tamanha brutalidade no corpo humano. Nos meus tempos de faculdade e residência, ainda sentia repulsa em algumas situações; agora, não sou capaz de me impressionar com qualquer problema que vejo. São apenas defeitos e mutilações da carne. Os danos físicos se curam com mãos, panos, linhas, agulhas, tesouras e bisturi; para as doenças, há os remédios. Obviamente, nem sempre é possível ajudar os pacientes, mas isto é algo que o tempo também me ensinou. Resignei-me com as limitações humanas e não insisto em questões insolúveis. Não posso salvar todo mundo. A vida é assim.

Soltei um longo suspiro e olhei para meu relógio: os ponteiros marcavam 2h25min. O silêncio inquebrantável tornava-se mais pesado conforme o relógio trabalhava. Cada segundo parecia penetrar em meus poros como pequenos alfinetes, causando-me uma crescente aflição. Toda aquela inatividade parecia tão errada...

De repente, ocorreu- me que todos no hospital estavam mortos. Sim, devia ser isso. A UTI e a enfermaria estariam lotadas de cadáveres; as enfermeiras e o outro médico jaziam no chão de algum quarto, seus corpos enrijecidos e sem vida; até a recepcionista não poderia mais exercer sua função, pois na cadeira em que estava só existia um cadáver. O anjo da morte passara e havia tomado a força vital daquele lugar. Por alguma razão, fui poupado pelo ceifador das almas; talvez para ser testemunha da carnificina e anunciar ao resto da cidade que o julgamento final estava próximo. Em breve, as outras casas teriam seus habitantes usurpados e levados para o além-vida. As trombetas celestiais soariam e a destruição se alastraria por toda a Terra...

Balancei a cabeça com força. O sossego daquela noite começava a drenar minha sanidade. Percebi que estava divagando sobre um apocalipse improvável. Antes que minha mente viajasse para temas escabrosos, decidi dar uma volta pelo hospital e espairecer.

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⏰ Last updated: Jan 06, 2018 ⏰

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