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  A bordo do vapor Fevre Dream, rio Ohio, julho de 1857  

  O Fevre Dream partiu de New Albany quando já estava escuro, em uma noite abafada noinício de julho. Em todos os seus anos no rio, Abner Marsh nunca se sentira tão vivo comonaquele dia. Passou a manhã cuidando dos últimos detalhes em Louisville e New Albany.Contratou um barbeiro, almoçou com os homens do estaleiro e pôs um punhado de cartas nocorreio. No calor da tarde, instalou-se no seu camarote, fez uma última vistoria pelo barcopara certificar-se de que estava tudo em ordem e cumprimentou alguns dos passageiros decamarote à medida que chegavam. Acelerou a preparação do jantar e depois foi para o convésprincipal falar com o engenheiro, com os auxiliares que checavam as caldeiras e com o oficialnáutico que supervisionava o embarque do restante da carga. O sol ardia sem trégua e o arestava pesado e quieto, por isso os estivadores brilhavam de suor levando engradados, caixase barris pelas estreitas pranchas de carregamento, enquanto o oficial náutico despejava-lhesofensas o tempo todo. Marsh soube que havia também outros barcos carregando ou partindocom destino a Louisville, do outro lado do rio: o grande Jacob Strade, de baixa pressão, daCincinnati Mail Line, o rápido Southerner, da Companhia de Vapores Cincinnati & Louisville,e meia dúzia de barcos menores. Prestou atenção para ver se qualquer um deles estavaseguindo rio abaixo, e, quando o sol se pôs, sentiu-se muito bem, apesar do calor e das nuvensde mosquitos que se ergueram do rio naquela hora.O convés principal estava lotado de carga, na parte da frente e de trás, preenchendoquase todo o espaço não ocupado pelas caldeiras, fornalhas e motores. O barco carregavaquinhentas toneladas de caixas de folhas de tabaco, trinta toneladas de barras de ferro,incontáveis barris de açúcar, farinha, aguardente, caixas com mobília fina para alguns ricos deSt. Louis, dois blocos de sal, algumas peças de tecido de seda e algodão, trinta barris depregos, dezoito caixas de rifles, alguns livros, papéis, além de miudezas diversas. E banha deporco. Uma dúzia de grandes barris com a melhor banha de porco. Mas a banha não eraexatamente carga; Marsh a comprara para ele mesmo e mandara armazená-la a bordo.O convés principal estava apinhado de passageiros, entre homens, mulheres e crianças,todos aglomerados como os mosquitos do rio, fervilhando e acotovelando-se no meio dacarga. Quase trezentas pessoas haviam se instalado ali, pagando um dólar cada pela passagematé St. Louis. E a passagem era a única coisa que tinham; comiam o que haviam trazido abordo com eles, e os mais sortudos encontravam um lugar para dormir no convés. Eram namaioria estrangeiros, irlandeses, suecos, holandeses enormes, todos gritando uns com osoutros em línguas que Marsh não conhecia, bebendo, xingando e estapeando seus filhos.Também havia por ali alguns caçadores de peles e trabalhadores comuns, pobres demais paraterem algo além de uma passagem de convés, e ainda assim com os preços promocionais deMarsh.Os passageiros de camarote haviam pagado dez dólares, pelo menos aqueles que iamcumprir o trajeto inteiro até St. Louis. Quase todos os camarotes estavam ocupados, mesmopor aquele preço; o oficial náutico disse a Marsh que havia cento e setenta e sete passageirosde camarote a bordo, o que Marsh imaginou que deveria ser um bom número com todosaqueles setes. A lista incluía doze fazendeiros, o diretor de uma grande empresa de peles deSt. Louis, dois banqueiros, um inglês rico com as três filhas e quatro freiras que iam paraIowa. Havia ainda um pregador religioso a bordo, mas isso não era problema, pois nãoestavam transportando nenhuma égua cinza; era bem sabido entre os ribeirinhos que ter abordo um pregador e uma égua cinza na mesma viagem era um convite ao desastre.Quanto à tripulação, Marsh estava bem satisfeito com ela. Os dois pilotos, bem, nãoeram nada de especial, mas haviam sido contratados apenas temporariamente para levar ovapor até St. Louis, já que eram pilotos do rio Ohio e o Fevre Dream estava indo operar naregião de New Orleans. Ele já escrevera cartas para St. Louis e New Orleans e tinha um parde pilotos ágeis do baixo Mississippi esperando por ele na Planter's House. O resto datripulação, no entanto, era tão boa quanto a de barcos de qualquer outro rio, Marsh tinhacerteza. O engenheiro era Whitey Blake, um baixinho esquentado cujas costeletas de umbranco luminoso sempre tinham manchas da graxa dos motores. Whitey trabalhara com AbnerMarsh no Eli Reynolds, mais tarde no Elizabeth A. e no Sweet Dream, e nunca houve ninguémque entendesse um motor a vapor melhor do que ele. Jonathon Jeffers, o oficial náutico, usavaóculos de armação de ouro, tinha cabelo castanho bem liso e penteado para trás e usavavistosas polainas de botão, mas era uma fera em cálculos e em pechinchar, nunca esquecia denada, fechava ótimos contratos e jogava muito bem xadrez. Jeffers sempre fora do escritórioprincipal da linha marítima até que Marsh escreveu-lhe e pediu que viesse trabalhar no FevreDream. Aceitou na hora; apesar de sua aparência de dândi, Jeffers era um ribeirinho até amedula de sua alma de matemático. Andava com uma bengala com cabo de ouro, que ocultavadentro uma espada. O cozinheiro era um negro liberto chamado Toby Lanyard, que já estavacom Marsh há catorze anos, e, desde que Marsh provara seus dotes culinários em Natchez,comprara-o e dera-lhe a liberdade. E o capataz — que se chamava Michael Theodore Dunne,embora ninguém o chamasse de outra coisa a não ser Hairy* Mike, exceto os estivadores, paraquem era o Senhor Dunne — era um dos maiores e mais malvados e teimosos homens do rio.Tinha bem mais de um metro e noventa de altura, olhos verdes, costeletas pretas e pelosgrossos pretos, eriçados e espalhados por seus braços, pernas e peito. Vivia falandopalavrões, tinha um gênio ruim e nunca ia a lugar algum sem sua barra de ferro de um metro decomprimento. Abner Marsh nunca vira Hairy Mike acertar ninguém com aquela barra, excetouma ou duas vezes, mas ele estava sempre com ela na mão, e corria entre os estivadores oboato de que uma vez rachara a cabeça de um homem que deixara cair uma caixa de conhaqueno rio. Era um capataz durão, justo, e ninguém derrubava nada quando ele estava olhando.Todo mundo no rio tinha o maior respeito por Hairy Mike Dunne.Era uma tripulação fantástica os homens do Fevre Dream. Já desde o primeiro dia todosse dedicavam a suas tarefas e, assim, na hora em que as estrelas se reuniam sobre NewAlbany, a carga e os passageiros já estavam a bordo e registrados, o vapor a toda e asfornalhas rugindo, com uma terrível luz rubra e calor suficiente para tornar o convés principalmais quente do que Natchez-under-the-hill numa noite boa, e um ótimo jantar estava sendopreparado na cozinha. Abner Marsh checou isso tudo e quando ficou satisfeito subiu até acabine do piloto, que se erguia resplandecente e digna acima de todo o caos e gritaria láembaixo. — Tire-o de popa — disse ele ao seu piloto. E o piloto aplicou vapor e posicionouas duas grandes rodas-d'água laterais para recuar. Abner Marsh, respeitosamente, ficou atrásdele, e o Fevre Dream deslizou suave para as águas escuras do Ohio, iluminadas por estrelas.Uma vez no rio, o piloto reverteu as rodas e virou o barco rio abaixo; o grande vaporvibrou um pouco e deslizou pelo canal principal com toda a facilidade, as rodas fazendochunca-chunca, chunca-chunca ao bater e revolver a água, e o barco se movendo cada vezmais rápido, com a velocidade da corrente e seu próprio vapor, em seu curso espumante eveloz como o sonho de um barqueiro, veloz como o pecado, veloz como o próprio Eclipse.Sobre suas cabeças, as chaminés soltavam duas longas serpentinas de fumaça preta, e nuvensde fagulhas revoavam e sumiam por trás delas, caindo no rio para morrer como inúmerosvaga-lumes vermelhos e laranja. Aos olhos de Abner Marsh, a fumaça, o vapor e as fagulhasque iam deixando como rastro atrás deles eram um espetáculo melhor e mais magnífico do quetodos os fogos de artifício que havia visto em Louisville no 4 de Julho. Então o piloto ergueuo braço e fez soar o apito do vapor, e aquele longo guincho agudo ensurdeceu a todos. Era umapito maravilhoso, com um toque de lamento selvagem, um som que podia ser ouvido aquilômetros.Mas só quando as luzes de Louisville e New Albany desapareceram atrás deles, e oFevre Dream começou a navegar entre margens tão escuras e despovoadas como eram umséculo antes, é que Abner Marsh se deu conta de que Joshua York havia subido até a cabine dopiloto e estava em pé ao lado dele.Estava muito bem-apresentado, com calça e casaca do mais puro branco, colete azulprofundo,camisa branca cheia de babados e enfeites e uma gravata de seda azul. A corrente derelógio, que se estendia por cima de seu colete, era de prata, e em uma das suas pálidas mãosYork usava um grande anel de prata com uma pedra azul brilhante, que cintilava. Branco, azule prateado: eram essas as cores do barco, e York parecia parte dele. A cabine do piloto tinhacortinas vistosas, em azul e prateado, e o grande sofá estofado na sua parte de trás era azul, eo oleado também. — Puxa, gostei do seu estilo, Joshua — disse Marsh.York sorriu. — Obrigado — disse. — Pareceu-me adequado. E você está muito bem,também. — Marsh havia comprado uma nova jaqueta de piloto com botões de metal brilhantese um quepe com o nome do barco gravado em fio prateado.— Certo — Marsh replicou. Ele nunca ficava à vontade com elogios; palavrões erammais fáceis e confortáveis para ele. — Bem — disse —, você estava acordado quandopartimos? — York dormira na cabine do capitão, no convés principal, a maior parte do dia,enquanto Marsh suava, se preocupava e cumpria a maioria das tarefas concretas de umcapitão. Marsh aos poucos foi se acostumando com aquela maneira de York e seuscompanheiros, de viverem à noite e dormirem de dia. Conhecia outras pessoas que faziamisso. E, da única vez que mencionou o assunto a York, Joshua apenas sorriu e declamou denovo para Marsh aquele poema que falava do "áureo dia".— Eu fiquei em pé lá no convés superior, à frente das chaminés, observando tudo.Estava frio lá em cima, depois que a gente se pôs a caminho.— Um vapor rápido cria seu próprio vento — disse Marsh. — Não importa quanto o diaesteja quente ou quanto a lenha queime bem, é sempre muito bom e fresco lá em cima. Àsvezes sinto um pouquinho de pena dos que estão embaixo, no convés principal, mas, afinal,eles estão pagando só um dólar.— É claro — concordou Joshua York.O navio fez um bum naquele exato instante e chacoalhou um pouco.— O que foi isso? — York perguntou.— Provavelmente a gente só passou por cima de um tronco — Marsh respondeu. — Éisso? — perguntou ao piloto.— Eu diria que raspamos nele — o homem respondeu. — Não se preocupe, capitão.Não quebrou nada.Abner Marsh assentiu e voltou-se para York. — Bem, não seria melhor descermos parao salão principal? Os passageiros devem estar todos acordados e circulando, vendo como éessa primeira noite no navio, então podíamos ir até lá encontrar alguns deles, conversar echecar se está tudo bem.— Eu adoraria — disse York. — Mas, primeiro, Abner, você viria comigo até meucamarote tomar um drinque? Precisamos celebrar nossa partida, não acha?Marsh deu de ombros. — Um drinque? Bem, por que não? — Ele deu um toque no seuquepe para cumprimentar o piloto. — Boa noite, senhor Daly. Vou mandar trazer um café aquiem cima para o senhor, se quiser.Saíram da cabine do piloto e dirigiram-se ao camarote do capitão, mas tiveram queparar um momento enquanto York destravava a porta — ele insistira para que seu camarote, ena verdade todos os camarotes principais do barco, tivessem boas fechaduras. Isso era umpouco peculiar, mas Marsh aceitou de boa vontade. Afinal, York não estava habituado à vidanum vapor, e a maioria das suas outras exigências havia sido bastante sensata, como todaaquela prata e espelhos que faziam do salão principal um lugar tão esplêndido.O camarote de York tinha três vezes o comprimento dos camarotes de luxo e era duasvezes mais largo. Portanto, para os padrões de um barco a vapor, era imenso. Mas esta era aprimeira vez que Abner Marsh entrava nele desde que York tomara posse, então olhou emvolta curioso. Um par de lamparinas a óleo de cada lado do camarote dava ao interior umaluminosidade calorosa, acolhedora. As amplas janelas com vitrais estavam escuras agora,fechadas e com cortinas pesadas de veludo preto, que parecia suave e felpudo à luz daluminária. Num canto havia uma cômoda alta com gavetas e uma bacia de água em cima, e umespelho com moldura prateada na parede. Havia ainda uma cama com colchão de penas,estreita, mas confortável, duas grandes poltronas de couro e uma escrivaninha de pau-rosa,grande, espaçosa, com um monte de gavetas e compartimentos. Ficava bem encostada àparede. Acima dela, um mapa antigo muito bom do sistema do Mississippi havia sido pregadocom tachas. O tampo da escrivaninha estava cheio de livros com capa de couro e pilhas dejornais. Esta era outra das peculiaridades de Joshua York: ele lia uma quantidade exageradade jornais, de todas as partes do mundo — jornais da Inglaterra, jornais em línguasestrangeiras, a Tribuna do senhor Greeley, é claro, e o Herald, de Nova York, também, quasetodos os jornais de St. Louis e New Orleans e todo tipo de semanários das pequenas cidadesribeirinhas. Todo dia ele recebia pacotes de jornais. Livros também. Havia uma estante alta nocamarote, abarrotada, e mais livros ficavam empilhados na mesinha ao lado da cama, comuma vela de leitura semiderretida em cima deles.Abner Marsh, porém, não perdeu tempo olhando os livros. Perto da estante havia váriasprateleiras de madeira com vinhos, umas vinte ou trinta garrafas, bem arrumadas lado a lado.Ele foi direto até lá e pegou uma delas. Estava sem rótulo, e o líquido dentro dela eravermelho-escuro, tão escuro que era quase preto. Uma cobertura de cera preta brilhantelacrava a rolha de cortiça. — Você tem uma faca? — ele perguntou a York, virando-se com agarrafa na mão.— Não acho que você vá gostar muito dessa bebida, Abner — disse York. Ele seguravauma bandeja com dois cálices de prata e um decantador de cristal. — Eu tenho um xerezexcelente aqui. Que tal a gente tomar?Marsh hesitou. O xerez de York costumava ser ótimo, e ele odiava perder a oportunidadede tomá-lo, mas, conhecendo Joshua, imaginava que qualquer vinho que ele tivesse em seuestoque privado deveria ser excelente. Além disso, estava curioso. Ficou passando a garrafade uma mão para a outra. O líquido dentro dela oscilava lentamente, deslizando lânguidocomo algum licor doce. — Seja como for, o que é isto? — Marsh perguntou, franzindo ocenho.— Um tipo de mistura doméstica — York replicou. — Um pouco de vinho, um pouco deconhaque, um pouco de licor, e o gosto não é de nenhum dos três. Uma bebida estranha, Abner.Meus companheiros e eu temos uma queda por ela, mas a maioria das pessoas não gosta.Tenho certeza de que você vai preferir o xerez.— Bem — disse Marsh, sopesando a garrafa —, qualquer coisa que você bebaprovavelmente eu vou achar muito boa, Joshua. E você sempre serve um xerez muito bom, nãohá dúvida. — Ele se reanimou. — A gente não tem pressa, e eu por mim estou com uma belavontade de beber. Por que a gente não experimenta os dois?Joshua York riu, uma risada de puro prazer espontâneo, rica e musical. — Abner —disse ele —, você é um sujeito singular e formidável. Gosto de você. Mas você, ao contrário,não vai gostar da minha bebida. Mesmo assim, já que insiste, vamos provar dos dois.Eles se acomodaram nas duas poltronas de couro e York colocou a bandeja na mesinhabaixa entre os dois. Marsh passou-lhe a garrafa de vinho, ou do que quer que fosse. De algumlugar das dobras impecáveis de seu terno branco, York fez surgir um pequeno canivete, comcabo de marfim e uma longa lâmina prateada. Removeu o lacre de cera e com um único girohábil enfiou a ponta do canivete na rolha e a fez saltar com um ploc. O líquido entornoudevagar, fluindo como mel vermelho-escuro nos cálices de prata. Era opaco e parecia cheiode partículas pretas. Mas encorpado. Marsh ergueu seu cálice e sentiu o aroma, e o álcool dabebida fez seus olhos lacrimejarem.— Precisamos brindar — disse York, erguendo seu cálice.— A todo o dinheiro que vamos ganhar — Marsh brincou.— Não — disse York, sério. Aqueles seus olhos cinza-demônio tinham uma espécie degrave melancolia, pensou Marsh. Ele torceu para que York não fosse recitar poesia de novo.— Abner — continuou York —, eu sei o que o Fevre Dream significa para você. Eu quero quesaiba que ele significa muito para mim também. Hoje é o início de uma nova vida para mim.Você e eu, juntos, fizemos desse barco o que ele é, e vamos seguir em frente para fazer deleuma lenda. Sempre admirei a beleza, Abner, mas esta é a primeira vez na minha longa vida emque eu a criei, ou ajudei a criá-la. É uma boa sensação esta de trazer ao mundo uma coisa novae excelente. Particularmente para mim. E preciso lhe agradecer por isso. — Ele ergueu seucálice. — Vamos beber ao Fevre Dream e a tudo o que ele representa, meu amigo: beleza,liberdade, esperança. Ao nosso barco e a um mundo melhor!— Ao vapor mais rápido do rio! — retrucou Marsh, e ambos beberam. Ele quaseengasgou. A bebida particular de York desceu pegando fogo, queimando a parte de trás da suagarganta e espalhando ramificações de quentura por dentro dele, embora tivesse também umaespécie de doçura enjoativa e certo aroma desagradável que nem toda a sua intensidade edoçura conseguiam ocultar. O gosto era como se alguma coisa tivesse apodrecido dentro dagarrafa, pensou ele.Joshua York esvaziou seu cálice num sorvo longo, contínuo, com a cabeça inclinada paratrás. Então, pôs o cálice de lado, olhou para Marsh e riu de novo. — A expressão do seurosto, Abner, é maravilhosamente grotesca. Não se sinta compelido a ser educado. Eu oavisei. Por que não toma um pouco de xerez?— Acho que vou tomar, sim — respondeu Marsh. — Com certeza, vou tomar.Em seguida, quando duas tacinhas de xerez já haviam tirado o gosto residual da bebidade York da boca de Marsh, eles voltaram a conversar.— Qual é nossa próxima etapa depois de St. Louis, Abner? — perguntou York.— O comércio em New Orleans. Não há outra opção para um barco majestoso comoeste.York balançou a cabeça com impaciência. — Eu sei disso, Abner. Eu estava curioso arespeito de como você pretende realizar seu sonho de superar o Eclipse. Você vai tentarlocalizá-lo e lançar um desafio? Gostaria, mas desde que isso não nos atrasasseindevidamente ou nos tirasse do nosso caminho.— Seria bom se fosse tão simples assim, mas não é. Raios, Joshua, há milhares debarcos no rio, e todos eles gostariam de superar o Eclipse. Ele tem itinerários a cumprir, comonós, passageiros e carga para transportar. Não pode ficar simplesmente apostando corrida otempo inteiro. De qualquer modo, o capitão dele seria um tolo se aceitasse qualquer desafioda nossa parte. Quem somos nós, afinal? Um barco novo em folha de New Albany do qualnunca ninguém ouviu falar. O Eclipse teria tudo a perder e nada a ganhar apostando corridacom a gente. — Ele esvaziou outra taça de xerez e estendeu-a a York para enchê-la de novo.— Não, primeiro temos que levar adiante nosso negócio, construir uma reputação. Conseguirque o barco fique conhecido por todo o rio como um barco rápido. Não vai demorar para queas pessoas comecem a comentar sobre o quanto o barco é rápido, e a imaginar como seria umconfronto entre o Fevre Dream e o Eclipse. Talvez a gente encontre com ele no rio algumasvezes, e vamos supor que consigamos ultrapassá-lo. Isso vai aumentar o falatório, e aspessoas começarão a apostar. Talvez a gente faça alguns dos itinerários do Eclipse e consigaum tempo melhor. Um barco mais rápido consegue pegar melhores negócios, você sabe. Osfazendeiros, os transportadores, esse pessoal, eles querem colocar seus produtos no mercadoo mais rápido possível, então escolhem o barco mais rápido que houver. E os passageiros,bem, eles adoram viajar num barco famoso quando têm dinheiro para tanto. Então, como vocêvê, o que vai acontecer é que depois de um tempo as pessoas começarão a nos ver como obarco mais rápido do baixo rio, e o comércio vai começar a passar para o nosso lado, e oEclipse será atingido na sua parte mais sensível, o bolso. Desse modo, vai ser fácil conseguiruma corrida e provar de uma vez por todas quem é o mais rápido.— Entendo — disse York. — Quer dizer então que essa viagem para St. Louis vaicomeçar a espalhar nossa reputação?— Bem, eu não estou tentando bater nenhum recorde. É um barco novo, e a gente precisaconhecê-lo. Sequer temos nossos pilotos regulares a bordo, ninguém está familiarizado comseu funcionamento, e precisamos dar tempo ao Whitey para que ele resolva todos os pequenosproblemas com os motores e treine bem o seu pessoal. — Ele pôs de lado sua taça vazia. —Mas isso não quer dizer que não possamos começar com certas providências — disse ele,sorrindo. — E já tenho uma coisa ou outra em mente nesse sentido. Você vai ver.— Bom — disse Joshua York. — Mais xerez?— Não — disse Marsh. — A gente precisa descer até o salão, eu acho. Vou lhe pagar umdrinque no nosso bar. Garanto que vai ter um gosto melhor do que essa sua coisa dos diabos.York sorriu. — Será um prazer — disse ele.Aquela noite não foi como outras noites para Abner Marsh. Foi um sonho, uma noitemágica. Ela pareceu durar umas quarenta ou cinquenta horas, ele podia jurar, e cada umadessas horas foi inestimável. Ele e York ficaram acordados até o amanhecer, bebendo econversando sem parar, passeando por aquela maravilha de barco que haviam construído. Nodia seguinte, Marsh acordou com a cabeça de um jeito que ele mal conseguia lembrar metadedo que havia feito na noite anterior. Mas alguns momentos haviam ficado indeléveis na suamemória.Ele se lembrou de ter entrado no grande salão, e era melhor do que entrar no hotel maisrefinado do mundo. Os lustres brilhavam, as luminárias ardiam e os cristais cintilavam. Osespelhos faziam aquele salão longo e estreito parecer ter o dobro do seu tamanho. Havia ummonte de pessoas aglomeradas em volta do bar, falando de coisas como política, e Marsh sejuntou a elas por um tempo ouvindo suas queixas sobre o abolicionismo e seus argumentossobre se Stephen A. Douglas deveria ou não ser presidente, enquanto York foi dizer alô aSmith e Brown, que estavam numa das mesas jogando cartas com alguns fazendeiros e umconhecido jogador. Alguém dedilhava o piano de cauda, as portas dos camarotes de luxoabriam e fechavam o tempo inteiro, e o lugar todo brilhava com luzes e risadas.Mais tarde, desceram até um mundo diferente no convés principal; carga empilhada portoda parte, estivadores e passageiros de convés dormindo em cima de rolos de corda e sacosde açúcar, uma família reunida em volta de uma pequena fogueira que haviam acendido paracozinhar alguma coisa, um bêbado desmaiado sob as estrelas. A sala de máquinas estavabanhada pela luz vermelha das fornalhas, e Whitey estava no meio daquilo tudo, com suacamisa ensopada de suor e com graxa na barba, gritando com os peões para se fazer ouvirapesar do chiado do vapor e do chunca-chunca das rodas agitando a água. As grandesalavancas eram impressionantes, movendo-se para a frente e para trás em seus longos epotentes golpes. Ficaram lá observando por um tempo, York e ele, até que o calor e o cheirode óleo da máquina acabaram sendo demais para eles.Um tempo depois já estavam lá em cima, no convés superior, passando a garrafa de umpara o outro, andando e conversando sob a brisa fria. As estrelas brilhavam acima de suascabeças como os diamantes de uma dama. O estandarte da Rio Fevre tremulava tanto nomastro de proa como no de popa, e o rio em volta deles era mais escuro que o mais negro dosescravos que Marsh já vira na vida.Viajaram a noite toda, com Daly em pé suportando a longa vigília na cabine do piloto,mantendo-os a uma velocidade boa — embora longe da que eles poderiam alcançar sepressionados, Marsh sabia disso — ao longo do negro rio Ohio, com um grande vazio à suavolta. Foi uma viagem fascinante, sem troncos submersos ou boiando na água ou bancos deareia para infernizá-los. Apenas duas vezes tiveram que mandar um bote à frente deles parasondar a profundidade, e nas duas vezes encontraram boas condições ao baixarem a sonda,tendo o Fevre Dream seguido adiante. Era possível vislumbrar algumas casas nas margens, amaioria no escuro e trancada, mas uma delas tinha uma luz acesa numa das janelas superiores.Marsh ficou imaginando quem estaria lá acordado e o que as pessoas estariam pensando aover aquele vapor passar por elas. O barco devia compor uma visão impressionante com todosos seus conveses iluminados e a música e as risadas deslizando pela água, as fagulhas e afumaça saindo das chaminés e o nome bem grande sobre a roda-d'água, Fevre Dream, todo emletras azuis bonitas e robustas com a borda prateada. Ele quase desejou estar na margem paraver.A maior emoção aconteceu pouco antes da meia-noite, quando avistaram pela primeiravez outro barco agitando a água à frente deles. Na hora em que Marsh o viu, segurou York pelocotovelo e o fez subir até a cabine do piloto. Estava cheio de gente lá, Daly ainda no timão,bebericando café, dois outros pilotos e três passageiros sentados no sofá atrás dele. Os outrospilotos não eram ninguém contratado por Marsh, mas era costume do rio que os pilotostransitassem livremente se quisessem, e em geral eles iam até a cabine de comando paraconversar com o homem que estivesse no timão e ficar também de olho no rio. Marsh ignorouos.— Senhor Daly — disse ele ao seu piloto —, temos outro vapor à nossa frente.— Estou vendo, capitão Marsh — Daly respondeu com um sorriso lacônico.— Imagina que barco deva ser? Tem alguma ideia, Daly? — Qualquer que fosse o barco,não era lá grande coisa; algum vapor atarracado com roda-d'água traseira e uma cabine depiloto quadrada como uma caixa de biscoitos.— Com certeza não sei — respondeu o piloto.Abner Marsh voltou-se para Joshua York. — Joshua — disse ele —, você é overdadeiro capitão aqui e eu não quero ficar dando sugestões demais. Mas a verdade é queestou muito curioso em saber que barco é esse à nossa frente. Que tal dizer ao Daly paraalcançá-lo para nós, para que eu possa sossegar um pouco.York sorriu. — Com certeza — disse ele. — Senhor Daly, o senhor ouviu o capitãoMarsh. Acha que o Fevre Dream consegue alcançar aquele barco lá na frente?— Ele consegue alcançar qualquer coisa — disse o piloto. Ele gritou para o engenheiromandar vapor e puxou a corda do apito de vapor de novo, e aquele apito furioso e infernalecoou pelo rio, como se estivesse avisando o barco à frente deles de que o Fevre Dreamestava vindo atrás.O barulho foi suficiente para fazer todos os passageiros do salão principal saírem até oconvés. Fez até os passageiros de convés levantarem dos seus sacos de farinha. Doispassageiros subiram e tentaram entrar na cabine do piloto, mas Marsh mandou-os descer devolta, e também foi tirando os três que já estavam lá. Como seria de esperar, todos ospassageiros correram para a proa do barco, e depois para bombordo, quando ficou claro queera o lado pelo qual iriam ultrapassar o outro vapor. — Malditos passageiros — Marshresmungou baixinho para York. — Nunca vão aprender a equilibrar bem um navio. Um diadesses vão correr todos para o mesmo lado e fazer algum pobre vapor desses tombar, podeescrever.Por mais que reclamasse, Marsh estava encantado. Whitey enfiava mais lenha láembaixo, as fornalhas rugiam e as grandes rodas se moviam cada vez mais rápido. A coisa foiresolvida em muito pouco tempo. O Fevre Dream parecia devorar as milhas entre ele e ooutro barco, e quando passaram por ele um alarido subiu dos conveses inferiores, o que foiuma doce música aos ouvidos de Marsh.Quando passaram pelo pequeno navio de propulsão traseira, York leu o nome dele nacabine do piloto. — Parece que é o Mary Kaye — disse ele.— Bem, ele que vá fritar bolinhos! — disse Marsh.— É algum barco conhecido? — York perguntou.— De jeito nenhum — disse Marsh. — Nunca ouvi falar. Você consegue ganhar dele? —E então riu estrondosamente e bateu nas costas de York, e de repente todo mundo na cabine dopiloto caiu na risada.Antes que a noite terminasse, o Fevre Dream já havia alcançado e ultrapassado umameia dúzia de vapores, incluindo um de rodas-d'água laterais quase tão grande quanto ele,mas nunca foi tão emocionante como a primeira vez, quando alcançou o Mary Kaye. — Vocêqueria saber de que jeito iríamos começar — disse Marsh a York quando eles saíram dacabine do piloto. — Bem, Joshua, pois já começamos.— Sim — disse York, olhando para trás e vendo o Mary Kaye ficar cada vez menor. —Sem dúvida, já começamos.  

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