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  A bordo do vapor Eli Reynolds, rio Mississippi, outubro de1857  

  Abner Marsh estava observando da cabine do piloto do Eli Reynolds quando o Fevre Dreamdesviou para o outro lado do rio. Ele bateu sua bengala com força e xingou, mas no íntimo nãotinha certeza de se estava desapontado ou aliviado com aquilo. Teria sido como se lhearrancassem o coração do peito ver seu lindo barco estraçalhar-se em pedaços naquelemaldito recife, Marsh sabia disso. Por outro lado, o Fevre Dream agora ainda estava atrásdeles, e, se alcançasse o Reynolds, sem dúvida Damon Julian iria mesmo arrancar-lhe ocoração do peito. Parecia um jogo de ou perde ou perde. Marsh ficou lá em pé, de caraamarrada, enquanto o piloto do Eli Reynolds girava seu timão e começava também a cruzarpara o outro lado do rio. Navegando atrás deles no escuro, o Fevre Dream era uma visãopavorosa. Marsh construíra aquele barco para superar o Eclipse, para ser o barco mais rápidoque jamais navegara por ali, e agora tinha que superá-lo num dos barcos mais velhos epatéticos de todo o rio. — Não adiantou nada — disse ele em voz alta, virando-se para opiloto. — Estamos numa corrida — disse. — Não deixe que eles nos alcancem.O homem olhou para o capitão achando que ele tivesse ficado louco, e talvez tivessemesmo.Abner Marsh desceu até o convés principal, para ver o que era possível fazer. Cat Grovee o engenheiro-chefe, Doc Turney, já haviam assumido. O convés estava tomado pelo calor. Afornalha rugia e crepitava, soltava labaredas de fogo e de vez em quando os bombeirosatiravam mais lenha. Grove tinha todos os seus foguistas lá, suando, alimentando aquelabocarra vermelho-alaranjada e besuntando as madeiras de faia e os nós de pinho com banhade porco antes de atirá-las lá dentro. Grove carregava um baldinho de uísque com uma grandeconcha de cobre, e ia passando-a para cada homem, para que pudessem beber fazendo a pausamais breve possível. O suor escorria do seu peito nu, num fluxo contínuo, e, assim como seusfoguistas, tinha o rosto vermelho por causa daquele terrível calor. Era incrível ver comoconseguiam suportar aquilo, mas a fornalha era alimentada sem parar.Doc Turney estava de olho nos medidores de pressão da caldeira. Marsh foi até lá etambém deu uma olhada. A pressão aumentava cada vez mais. O engenheiro olhou para ele. —Nunca deixei a pressão ficar tão alta nos quatro anos que estou aqui neste barco — ele gritou.Era preciso gritar para ser ouvido no meio daquele fritar e tossir da fornalha, da chiadeira dovapor, das marteladas do motor. Marsh estendeu a mão hesitante, mas recolheu-a rápido. Acaldeira estava quente demais para encostar a mão. — O que eu faço com a válvula desegurança, capitão? — perguntou Turney.— Feche-a — Marsh gritou. — Precisamos de vapor.Turney fez uma careta, mas cumpriu a ordem. Marsh olhou para o medidor: a agulhasubia sem parar. O vapor praticamente se esganiçava pelas válvulas, mas produzia efeito: omotor sacudia e dava trancos como se fosse se partir em pedaços; e a roda-d'água girava,mais rápido do que jamais havia feito em anos, uapa-uapa-uapa-uapa, rodava tanto que abriuum leque de espuma atrás do barco, que vibrava inteiro, com um empuxo que nuncaexperimentara antes.O segundo engenheiro e os peões dançavam em volta dos motores, lubrificando-os comóleo e graxa, mantendo seu funcionamento macio. Pareciam macaquinhos pretos encharcadosde piche. Também se mexiam rápido como macacos. E tinha que ser assim. Não era fácillubrificar partes móveis enquanto estas se movimentavam, ainda mais no ritmo em que o velhoe combalido motor do Reynolds se movia agora.— MAIS RÁPIDO! — berrou Grove. — Mais rápido com a banha! — Um bombeiro ruivoimenso cambaleou, afastando-se da boca da fornalha, zonzo de tanto calor. Ele caiu dejoelhos, mas outro foguista tomou seu lugar na hora, e Grove foi até o homem caído ederramou uma concha de uísque na cabeça dele. O homem olhou para cima, molhado episcando os olhos, abriu a boca, e o marinheiro despejou um pouco mais de uísque pela goeladele. Num minuto ele estava bom de novo, em pé, esfregando os nós de pinho com banha deporco.O engenheiro franziu o cenho e abriu as válvulas de escape, despejando vaporescaldante e sibilante na noite e aliviando um pouquinho a pressão da caldeira. Então apressão voltou a subir de novo. A solda derretia e escorria em alguns tubos, mas os homensestavam a postos para remendar qualquer fenda que se abrisse. Marsh estava empapado desuor por causa do calor úmido do vapor e da secura daquela fornalha furiosa. Por todo lugar àvolta dele havia gente correndo, gritando, carregando madeira e banha, alimentando afornalha, cuidando das caldeiras e dos motores. Os trancos do motor e as rodas-d'água faziamum barulho terrível, as chamas da fornalha tingiam todos eles de uma luz vermelha oscilante.Era um inferno sufocante, um caos de barulho, atividade, fumaça, vapor e perigo. O vaporbalançava, tossia e estremecia como um homem à beira de um colapso e da morte. Mas seguiaadiante, e lá embaixo não havia mais nada que Abner Marsh pudesse dizer ou fazer paraacelerar seu movimento.Sentiu-se grato ao subir lá fora, no castelo de proa, longe daquele calor terrível, com seucasaco, camisa e calças tão molhados como se tivesse acabado de sair do rio. O vento passoupor ele e Marsh sentiu por um breve momento um maravilhoso frescor. Lá na frente viu umailha dividindo o rio e uma luz mais adiante, na margem oeste. Eles estavam navegando rápidonaquela direção. — Raios — disse Marsh. — Devemos estar fazendo umas vinte milhas porhora. Diabos, talvez a gente esteja a umas trinta milhas — disse isso em voz alta, quasegritando, como se o trovejar de sua voz pudesse tornar aquilo mais verdadeiro. O EliReynolds era um barco de fazer oito milhas por hora num bom dia. É claro, agora ele tinhatambém a corrente do rio a seu favor.Marsh subiu a escada com ímpeto, foi até o salão principal e direto até o tombadilhopara dar uma olhada atrás deles. As bocas das chaminés curtas e atarracadas soltavamfagulhas por todo lado criando uma trilha de fogo, e ele viu vapor fervente saindo de novo dasválvulas de escape, pois Doc Turney soltava apenas o suficiente para evitar que a danada dacaldeira explodisse e mandasse todos para o inferno. O convés mostrava-se instável sob ospés de Marsh, como se fosse a pele de algo vivo. A roda de popa girava tão rápido quelevantava uma maldita cortina d'água, parecendo uma cachoeira invertida.E atrás deles vinha o Fevre Dream, meio no escuro, com fumaça e fogo subindo de suasaltas chaminés escuras a meio caminho da lua. O barco parecia estar agora uns vinte metrosmais perto do que quando Marsh descera.O capitão Yoerger subiu e postou-se ao lado de Marsh. — Não vamos conseguir corrermais do que eles — disse com sua voz de tom cansado e sombrio.— Precisamos de mais vapor! Mais calor!— A roda não pode girar mais rápido do que isso, capitão Marsh. Se o Doc espirrar nahora errada, aquela caldeira pode explodir e matar todos nós. O motor tem sete anos de idade,pode partir-se em pedaços. A banha está no fim, também. Quando acabar, vamos ter quealimentar o barco só com madeira. É um barco idoso, capitão. O senhor está fazendo eledançar como se estivesse na noite de núpcias, mas ele não vai aguentar isso por muito tempo.— Diabos! — disse Marsh. Ele olhou para trás da sua roda-d'água. O Fevre Dreamaproximava-se cada vez mais. — Diabos — ele repetiu. Yoerger tinha razão, pensou. E olhouadiante. Eles estavam quase chegando à ilha. O rio e o canal principal faziam uma curva paraleste. A bifurcação a oeste era um atalho, mas pequeno. Mesmo a distância, Marsh conseguiaver como ele se estreitava, como as árvores inclinavam-se das margens, estendendo suasfiguras negras e retorcidas. Ele andou de volta até a cabine do piloto e entrou. — Pegue oatalho — disse ele ao piloto.O piloto olhou para trás, chocado. No rio, era o piloto que decidia essas coisas. Ocapitão podia até sugerir algo, mas não dava ordens. — Não, senhor — o piloto retrucou,menos furioso do que um homem mais velho talvez ficasse. — Dê uma olhada nas margens,capitão Marsh. O rio desce. Eu conheço esse atalho, e não dá passagem nessa época do ano.Se eu for por ali vamos ter que nos instalar neste barco até as cheias da primavera.— Talvez seja assim — disse Marsh —, mas, se nós não conseguirmos passar, o FevreDream terá menos chances ainda. E terá que dar a volta. Com isso, conseguiremos escapardeles. Nesse momento, escapar deles é mais importante do que qualquer toco de árvoresubmerso ou banco de areia em que a gente possa encalhar, você entendeu?O piloto fez cara feia. — O senhor não tem o direito de me dizer como tenho que lidarcom o rio, capitão. Tenho minha reputação. Nunca naufraguei nenhum barco e não pretendocomeçar esta noite. Vamos nos manter no rio.Abner Marsh sentiu que ficava vermelho. Olhou para trás. O Fevre Dream estava quemsabe uns trinta metros atrás deles, e se aproximava rapidamente. — Seu idiota dos diabos —disse Marsh. — Esta é a corrida mais importante que já foi travada neste rio e eu tenho umestúpido como piloto. Eles já teriam nos alcançado se o senhor Framm estivesse no timão ouse tivessem um oficial náutico que soubesse como dirigir o barco. Eles provavelmente estãoalimentando a fornalha com uma madeira qualquer, como choupo. — Ele apontou com suabengala para o Fevre Dream. — Mas, olhe, mesmo lento como ele está, vai nos alcançar já,já, a não ser que a gente pilote melhor que eles. Está me ouvindo? Pegue o maldito atalho!— Posso denunciar o senhor à Associação — disse o piloto, irredutível.— E eu posso atirá-lo pela amurada — retrucou Abner Marsh. Ele avançouameaçadoramente.— Mande um bote primeiro, capitão — o piloto sugeriu. — A gente faz umas sondagense fica sabendo se dá pé ou não para passar.Abner Marsh bufou de desgosto. — Saia fora do maldito curso do rio — disse ele,empurrando o piloto para o lado com rudeza. O homem cambaleou e caiu. Marsh tomou otimão e virou-o depressa para estibordo, e o Eli Reynolds reagiu desviando sua proa. O pilotoxingou e esbravejou. Marsh ignorou-o e se concentrou em manobrar o vapor até que elecruzasse o ponto mais alto e lamacento da ilha, e descesse na margem oeste sinuosa. Ele deuuma olhada por trás do ombro, longa o suficiente para poder ver o Fevre Dream — a unssessenta metros agora — desacelerar, parar e começar a navegar para trás furiosamente.Quando olhou de novo, um momento depois, o vapor já se desviava em direção à curva lestedo rio. E então não houve mais tempo para olhar, pois o Eli Reynolds bateu em algo duro,talvez um grande tronco, a julgar pelo barulho. O impacto fez Marsh bater os dentes tão forteque quase mordeu e arrancou um pedaço da língua. Ele precisou se segurar forte no timão paranão cair. O piloto, que acabara de se levantar, caiu de novo e gemeu. A velocidade dovaporzinho fez com que montasse no obstáculo. Marsh conseguiu vê-lo por um instante: umaimensa árvore, preta, meio submersa. Seguiu-se um barulho horrível, uma batida e um baque, eo barco tremeu como se algum gigante maluco o tivesse agarrado e começado a chacoalhá-lo.Então houve um solavanco violento e o som terrível de madeira feita em pedaços quando aroda de proa passou martelando em cima do tronco.— Diabos! — disse o piloto, ficando em pé de novo. — Me dê o timão!— É todo seu — disse Abner Marsh, saindo do caminho. O Eli Reynolds havia deixadoo tronco morto para trás e estava navegando doidamente pelo atalho raso, dando trancosconforme abria caminho, passando por cima de um banco de areia atrás do outro. Cada bancoo fazia perder velocidade e o piloto desacelerou ainda mais, tocando os sinos da sala demáquinas como um louco. — Parada total! — gritou ele. — Parada total da roda-d'água! — Aroda ainda deu mais umas duas voltas, preguiçosamente, e parou com um gemido. Dois longospenachos de fumaça de vapor branco ainda chiaram ao sair pelas válvulas de escape. O EliReynolds perdeu a proa e começou a oscilar um pouco, e a roda do timão girou livre na mãodo piloto. — Perdemos o leme — disse ele, enquanto o vapor batia em mais um banco deareia.E, neste último, o barco parou de vez.Marsh mordera sua língua ao tombar para a frente em cima do timão. Alguém lá embaixogritava, ele ouviu. Ao se aprumar, cuspiu um pouco de sangue. Doía como o diabo.Felizmente, não cortou fora nenhum pedaço da língua.— Maldição! — disse o piloto. — Olhe. Olhe só isso!O Eli Reynolds perdera não só o leme, mas metade de sua roda-d'água também. Elaainda estava presa ao vapor, mas pendia toda torta, e metade das pás de madeira estavaestraçalhada ou tinha caído. O barco soltou vapor ainda uma vez mais, gemeu e ficouassentado na lama, um pouco inclinado para estibordo.— Eu avisei que a gente não ia conseguir passar pelo atalho — disse o piloto. — Euavisei. Nessa época do ano o rio é só areia e tocos de árvore. Isso não foi culpa minha e nãovou aceitar que ninguém diga que foi!— Cale a sua estúpida boca — disse Abner Marsh. Ele olhava para trás, onde o própriorio mal era visível entre as árvores. O rio parecia vazio. Talvez o Fevre Dream tivesseseguido adiante. Talvez. — Quanto tempo leva para contornar esta curva? — perguntou Marshao piloto.— Dane-se, por que raios você quer saber? A gente não vai a lugar nenhum até aprimavera chegar. O senhor vai precisar não só de um leme novo, mas de uma nova rodad'água,e também de um bom guindaste para tirar o barco desse banco de areia.— A curva — insistiu Marsh. — Quanto tempo leva para fazer a curva?O piloto falou esbaforido, meio cuspindo. — Trinta minutos, talvez vinte se ele estiver atoda, como vinha, mas o que importa? Eu já lhe disse...Abner Marsh abriu a porta da cabine do piloto e berrou pelo capitão Yoerger. Precisouberrar três vezes e demorou bem uns cinco minutos até o Yoerger aparecer. — Desculpe,capitão — disse o velho homem —, eu estava lá embaixo no convés principal. O irlandêsTommy e o grandalhão Johanssen ficaram muito escaldados. — Ele viu as ruínas da rodad'águae parou. — Coitadinho do meu velho navio — murmurou num tom deprimido.— Alguma tubulação explodiu? — perguntou Marsh.— Um monte delas — admitiu Yoerger, afastando seu olhar da roda-d'águaescangalhada. — Tem vapor por todos os cantos; teria sido pior, mas o Doc conseguiu abrirdepressa as válvulas de escape. A batida que a gente deu arrancou um monte de coisas dolugar.Marsh deixou cair os ombros, abatido. Esse era o golpe final. Agora, mesmo quepudessem içar o barco do banco de areia, montar um leme novo e de algum modo retrocederpelo atalho com apenas meia roda-d'água, para poder afastar o maldito tronco de árvore epassar — e nenhuma dessas coisas seria fácil —, eles ainda tinham tubulações estouradas equem sabe uma caldeira danificada para dar conta. Ele praguejou alto e por um bom tempo.— Capitão — disse Yoerger —, não seremos mais capazes de persegui-los agora, comoo senhor planejou, mas pelo menos estamos a salvo. O Fevre Dream vai dar a volta nestacurva e achar que já fomos embora faz tempo, e então vão continuar rio abaixo atrás de nós.— Não — disse Marsh. — Capitão, quero que monte umas macas para os doisqueimados; vamos atravessar o bosque. — Ele apontou com sua bengala. A margem do rioestava a uns três metros, em água rasa. — Vamos para alguma cidade. Deve ter alguma aquiperto.— Tem uma a uns três quilômetros da ponta desta ilha — disse o piloto.Marsh assentiu. — Muito bem. O senhor leve-os até lá então. Quero que vocês todos vãojuntos, e rápido. — Ele relembrou daquele clique da armação de ouro dos óculos de Jeffersquando caíram, aquele pequeno e terrível flash. De novo, não, pensou Abner Marsh; nãopoderia acontecer de novo por culpa sua. — Encontrem um médico para dar jeito nos dois. Osenhor estará a salvo, penso eu. Eles querem a mim, não ao senhor.— O senhor não vem junto? — perguntou Yoerger.— Tenho minha arma comigo — disse Abner Marsh. — E tenho um pressentimento. Vouficar e aguardar.— Venha conosco.— Se eu correr, eles vão me seguir. Se me pegarem, vocês estarão a salvo. Bem, sejacomo for, é assim que eu vejo as coisas.— E se eles não aparecerem...— Então eu irei atrás de vocês assim que raiar o dia — disse Marsh. Ele bateu suabengala no chão com impaciência. — Ainda sou o capitão aqui, não? Parem de discutircomigo e façam como eu disse. Quero todos vocês fora do meu barco, ouviram?— Capitão Marsh — disse Yoerger —, pelo menos deixe que Cat e eu fiquemos paraajudá-lo.— Não. Fora.— Capitão...— FORA! — gritou Marsh, com o rosto vermelho. — FORA!Yoerger empalideceu, pegou o assustado piloto pelo braço e tirou-o da cabine. Depoisque desceram apressadamente, Abner Marsh deu mais uma olhada para trás, para o rio —nada ainda —, e depois desceu a escada até seu camarote. Tirou o rifle da parede, checou aarma, carregou-a e enfiou a caixa de munição no bolso do seu casaco branco. Armado, Marshvoltou ao tombadilho e instalou sua cadeira onde pudesse ficar de olho no rio. Se eles fossemespertos, pensou Abner Marsh, iriam levar em conta que a água do rio estava baixa. Saberiamque o Eli Reynolds poderia passar pelo atalho, mas que talvez encalhasse, e que mesmo namelhor das hipóteses teria que fazer isso devagar, sondando o caminho. Saberiam, depois dedar a volta na ilha, que eles teriam chegado primeiro. E, com isso em mente, não iriam seguirrio abaixo de jeito nenhum. Estacionariam o Fevre Dream perto do final do atalho, esperandoo Reynolds passar. E, enquanto isso, os homens — ou o pessoal da noite — que eles teriamdesembarcado na ponta da ilha viriam pelo atalho num bote, imaginando que o Reynoldspoderia ter parado ou encalhado. Bem, isso pelo menos era o que o próprio Abner Marsh teriafeito.O pequeno trecho de rio que ele conseguia ver estava vazio ainda. Ele sentiu umcalafrio, de ficar lá esperando. Achava que a qualquer momento iria ver o bote adentrandoaquele trecho de árvores, cheio de figuras sombrias e silenciosas com rostos pálidos e comum sorriso afetado à luz do luar. Checou a arma de novo e ficou desejando que Yoergerestivesse indo a passo rápido.Yoerger, Grove e o resto da tripulação do Eli Reynolds já haviam partido há uns quinzeminutos, e nada ainda se movia pelo rio.Ouvia-se um monte de ruídos na noite. O murmúrio da água do rio em volta do vaporencalhado, o vento agitando as folhas das árvores, animais ao longe no bosque. Marsh ficouem pé, dedo no gatilho do rifle, e vasculhou rio acima, preocupado. Nada para ver, nada a nãoser a água barrenta do rio lavando os bancos de areia, as raízes retorcidas, o cadáver daárvore tombada que esmagara a roda-d'água do seu barco. Viu tocos de madeira boiando, emais nada. — Talvez não sejam tão espertos assim — murmurou baixinho.Pelo canto do olho, Marsh vislumbrou alguma coisa pálida na ilha depois do atalho dorio. Apontou para lá, com a arma apoiada no ombro, mas não havia nada ali, apenas bosquesescuros e densos e a lama grossa do rio. Vinte metros de água rasa estendiam-se entre ele e ailha escura e silenciosa. Abner Marsh respirava com dificuldade. E se eles não descessem debote pelo atalho do rio?, pensou ele. E se atracassem o bote e viessem a pé?O Eli Reynolds rangeu embaixo dele. Marsh ficou ainda mais inquieto. Está só seassentando, disse a si mesmo, está encalhado e se assentando na areia. Mas uma outra partedele sussurrava, dizendo-lhe que talvez aquele rangido tivesse sido um passo, que talvez eleso atacassem enquanto ele observava o rio. Talvez até já estivessem no barco. Quem sabeDamon Julian já estava subindo a escada naquele exato momento, deslizando pelo salãoprincipal — ele lembrava o quanto Julian sabia andar sem fazer barulho — e procurando noscamarotes, aproximando-se da escada que o levaria até ele, até o tombadilho.Marsh virou a cadeira para ficar de frente para o alto da escada, para a eventualidade deuma figura de rosto pálido aparecer de repente no seu campo de visão. Suas mãos suavam nolugar em que segurava o rifle, deixando a coronha escorregadia. Enxugou as mãos na perna dacalça.O som de um sussurro suave flutuou do poço da escada.Eles estavam lá embaixo, pensou Marsh; lá embaixo, tramando como chegar até ele. Eele encurralado lá em cima, sozinho. Não que estar sozinho o incomodasse. Já tivera ajudaantes e isso não fizera diferença para eles. Marsh levantou e foi até o alto da escada, olhandopara baixo, para a escuridão listrada pela luz do luar. Segurou firme a arma, pestanejou,aguardou para ver se alguma coisa aparecia. Esperou um longo tempo, ouvindo aqueles vagossussurros, o coração batendo como o velho motor cansado do Reynolds. Queriam que ele osouvisse, Abner Marsh pensou. Queriam que ficasse com medo. Eles tinham entradosorrateiramente no seu barco como fantasmas, tão ágeis e silenciosos que ele nem percebera, eagora tentavam meter-lhe medo. — Sei que vocês estão aí — gritou. — Subam. Tenho umpresente para você, Julian. — Ele sopesou a arma.Silêncio.— Dane-se você — gritou Marsh.Algo se moveu junto ao pé da escada, uma figura fugaz, pálida e rápida. Marsh ergueu aarma para atirar, mas já tinha sumido antes que pudesse sequer começar a mirar. Ele xingou edesceu dois degraus da escada. Parou. Era isso o que eles queriam que fizesse, pensou.Estavam tentando atraí-lo para baixo, até o passadiço e os camarotes sem iluminação, e oescuro e empoeirado salão com a luz do luar vazando por sua suja claraboia. Ali em cima, notombadilho, ele podia pelo menos mantê-los a distância. Seria mais difícil para eles alcançá-lo lá em cima; ele podia vê-los subindo a escada, escalando as laterais, o que fosse. Mas, láembaixo, estaria totalmente à mercê.— Capitão — uma voz suave o chamou. — Capitão Marsh.Marsh levantou sua arma e semicerrou os olhos.— Não atire, capitão. Sou eu. Apenas eu.Ela surgiu ao pé da escada. Valerie.Marsh hesitou. Ela sorria para ele, seu cabelo escuro captando os reflexos dos raios dalua, esperando. Vestia calça comprida e uma camisa de homem com babados, com osprimeiros botões abertos. Sua pele era suave e pálida; seus olhos encontraram os dele e oscapturaram, com seus reflexos violeta, profundos, belíssimos, infinitos. Ele poderia nadarnaqueles olhos para sempre. — Venha até mim, capitão — chamou Valerie. — Estou sozinha.Foi Joshua quem me mandou. Desça para a gente conversar. — Marsh desceu mais doisdegraus, aprisionado por aqueles olhos brilhantes. Valerie estendeu seus braços.O Eli Reynolds gemeu e se assentou, deslizando de repente para estibordo. Marshcambaleou e bateu forte a canela contra o degrau da escada, e a dor fez brotar lágrimas dosseus olhos. Ele ouviu uma risada fraca vindo lá de baixo, viu o sorriso de Valerie hesitar edesvanecer. Xingando, Marsh voltou a apoiar o rifle no ombro e disparou. O tranco quasearrancou seu ombro fora, e o fez bater contra os degraus. Valerie tinha sumido, evaporadocomo um fantasma. Marsh xingou e ficou em pé, procurando no bolso outro cartucho, recuandoescada acima. — Joshua, diabos! — ele rugiu para a escuridão. — Foi o Julian que mandouvocê aqui!Quando Marsh deu o último passo para trás até o tombadilho, ficou inclinado uns trintagraus e sentiu algo bem sólido pressionado entre as omoplatas. — Bem, bem — disse a vozatrás dele —, vejamos se não é o próprio capitão Marsh.Os outros apareceram, um por um, depois que Marsh deixou a arma cair no convés.Valerie veio por último e não o encarou nos olhos. Abner Marsh xingou-a de todos os nomespossíveis, concluindo com um sonoro "puta traiçoeira". Finalmente, ela lançou-lhe um olharterrível, acusador. — Você acha que eu tive escolha? — disse Valerie com amargura, e Marshinterrompeu sua fala. Não foram as palavras dela que o fizeram silenciar, mas o olhar. Porque,naquelas vastas profundezas violeta, Marsh viu brilhar, muito brevemente, a vergonha e oterror... e a sede.— Mexa-se — disse Sour Billy Tipton.— Dane-se você — disse Abner Marsh.  

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