Capítulo 1

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A primeira linha. As primeiras palavras. E então, o fluxo recomeça: traçar os escopos da mente até o papel, da forma mais verossímil; quase como se o escritor estivesse diante de uma escultura ou sonata em curso, algo nunca finalizado e que a mente insiste em reelaborar através de infinitas escritas. Nesse ponto o escritor, e você leitor, é capaz de perceber que se trata de um abismo, algo que fora uma linha bem tênue ao início; algo distante com um toque de fantasia, que os dedos tentam alcançar e o corpo se projetar em gravidade, tudo para que a ideia seja captada, sentida, desenvolvida... melhor ainda, pois, ele não deseja apenas isso, ele anseia por atracar-se no coração alheio, arrebatar a alma e o espírito com sua mão benevolente. Se trata de um abismo dentro de um abismo, onde ele iça a si mesmo e sua escrita com vontade seráfica; coisa que não é muito clara no começo, é algo como um borrão ou vulto mental, parte de si mesmo que deseja expandir-se e encontrar as profundidades do cosmo. É nesse ponto exato que a narrativa, a saga épica, começa; onde ele vê a si mesmo parte do todo e do tudo; uma só gota no oceano e a vida continua passando, assim como as palavras que continuam aparecendo como mágica – tudo lá fora já se tornou história – assim como é o ato da leitura, e aos poucos a respiração vai ficando no automático, toda ação e necessidade entra em modo hibernação.

Você sente que chegou em alto espaço, e é nesse ponto: o espaço entre nós, eu e você Major leitor, unidos através da mesma força expansiva, a mesma que veio enquanto Beethoven tão eloquentemente exaltava sua nona sinfonia, cruzando os limites da imaginação e da dimensão. Um rápido deslize ali ou aqui são permitidos, mas o flerte da epifania se mantém em curso. Atravessa o primeiro abismo bem demais, onde os medos e as inseguranças se ancoram – como começar um texto. Então, chegamos na divagação e no antro de um conteúdo, algo que aflora os instintos e a intelectualidade, mas que ainda assim em mim continua esse temor e eu refém, pois, fica a introspecção me puxando mais e mais para as margens da lógica, do ser racional, de como é sair das primeiras linhas, cruzar o estreito dos poemas, alinhar os mapas e chegar a terra prometida dos contos e crônicas... eis que vejo uma citação do grande Nietzsche: Quando se olha muito tempo para o abismo, o abismo olha para você; e por um momento se pensa que nunca se viu ou ouviu tamanha verdade, que a frase faz extremo sentido para todos os seus complexos e cavernas mentais. Enfim, mais uma vez você sente que tem um incômodo frequentemente petulante e vazio a olhar para você, um abismo que te sussurra os seus sonhos, fala de grandes sagas, epopeias, odes e livros que apenas rondam sua mente, grandezas imponentes e incertas nos recônditos de si mesmo. Então, mais uma vez você pensa em grandes figuras, nomes exuberantes pipocam ali, tudo distinto e magnânimo que simplesmente continua ecoando nas águas do tempo, permanecem, os abismos, ainda batendo contra o tudo e o nada, como se fossem imortais, sendo póstumas também exalam frescor e epifanias; no entanto isso nunca soou tão distante, essas figuras que você lê, consome e nutre cada artéria e músculo, tal qual pão e o vinho, tal qual pudessem esmigalhar as suas vontades e fazer os abismos olharem compenetrados para os lugares inóspitos da sua mente, revelando noções e conhecimentos sobre si mesmo que duvidaria. É também nesse momento que você também percebe quantas histórias existem, e as ideias que lhe correm a mente continuarão a aparecer, porém agora elas soam tão vagas e inalcançáveis, o espírito inabalável esmorece como o aço esmaecido, e continuam batendo nos rochedos da vida os murmúrios e boatos de jornadas épicas, ideias que abalam o mundo enquanto o abismo circunda a todos nós. Ele envolve você, leitor, nessa gravidade zero à prova de vácuo, mas também a prova de sombra solar, e lentamente todos os amigos imaginários – os quais se achavam mortos pelo tempo -, retornam vibrantes e aconchegantes com novas roupagens, assim bem são: niilismo, inquietudes e incredulidades que se arrastam pelos campos vastos do saber. No entanto, Beethoven continua seu número, os minutos escorrem pelos ares e as histórias continuam lá; sentadinhas e fazendo sala em espera infindável. Vagam pensamentos e noções sobre o tanto de abismos ainda não existentes, dezenas de bilhões de livros escritos, voam as palavras em forma de dado pelas conexões, mais palavras escorrem da história e continuam impregnadas nos séculos que vão se passando, e você se pergunta porque há tanto e nada dentro de si mesmo, você se pergunta também se haveria todo conhecimento literário de ser queimado para recomeçar mais belamente e se esse preço seria justificável e aceitável diante de tantos abismos monstruosos que habitam por aí...

Prosseguem lá fora guerras e óperas, solenes festas e farrapos de imundície, tragédias que andam nos olhos das pessoas e nas suntuosas e elegantes pessoas vazios inestimáveis, animais nascendo e criando espécies diferentes enquanto pessoas são sequestradas, drogas e realidades paralelas nas fronteiras à medida que prisões se abarrotam, leitos de morte e cemitérios cheios, mas nenhuma vida nos corredores e empresas, então as lágrimas e um certo langor escorrem pelos dedos, choram as palavras, escritor e leitor, se veem juntos mais do nunca, percebem a quantidade de mundos e histórias implorando para serem contadas, melhor ainda, vividas com tamanha diligência que acabam se perdendo nas multidões, e se perdem nos livros e filmes, histórias contadas pela metade, ideias e plágios que continuam acontecendo, mas nada mudou, o tempo continua passando, as pessoas ansiando pela laranja metade e os abismos olhando firmemente para sua presa, entremeio dessa sinfonia tão vigorosa e lânguida tudo se anula e tudo se soma, as probabilidades e paradoxos casam...


E tudo continua o mesmo, os olhos tristonhos e felizes dos humanos que correm pelas ruas, o abismo continua sendo combatido e chamado de demônio, mas eu e você leitor, eu já não sei mais se continuamos nessa roda de ratos, rodando em ciclos e círculos prestes a entrar em nova terra, e para arrebatar ou ser ficam ainda algumas dúvidas que suspiram e se convidam para a festa. Mas, eu escritor, continuarei escrevendo, trocando minutos de vida por palavras no papel, e soa como um desperdício, e você se sente minúsculo diante de todos milênios áureos, e finalmente as últimas notas soam com tamanho esplendor que tudo some, os abismos asfixiados e faltam palavras para o próximo ato e fica essa sensação no ar... essa força da natureza abismal... leitor e escritor, o real apogeu das tramas porvir.  

Crônicas AbismaisWhere stories live. Discover now