ONZE

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      Por algum motivo, me recordo de Zero-Quatro.

O cadete sempre fora bonito. Alto, largo e bronzeado. O que nunca eliminou o fato de mais óbvio de ser um porco. Me lembro dos tempos escassos em que freqüentei a escola no clã, por obrigatoriedade severa em forma de cláusulas e punições. Ele costumava fazer sucesso com as gândarenses, e nunca precisou chantegear nenhuma delas para ter seus divertimentos. Não como tentou comigo. Aos 10 anos de idade me descobri pensando que o pequeno aspirante à soldado pudesse ser o sinônimo do famoso "príncipe encantado" do qual os gândarenses mais velhos costumavam contar histórias. Obsoletas e fantasiosas, todas elas. Zero-Quatro era uma pequena coisa bonita e atraente para sustentar essa vã teoria. Lógico que tudo mudou bruscamente quando enfim descobri as atrocidades violentas e inumanas que rapazes bonitos eram capazes de fazer. E todas elas envolviam dor. Honesta e constante. Das formas mais inimagináveis possíveis. Físicas, emocionais, as recém criadas e até as inexistentes.

 Desde então passei a evitar rapazes bonitos. O único que permiti entrar em minha vida foi Jota, e só depois de quase estrangulá-lo na terceira semana em que ele foi à minha procura agradecer pela enésima vez pelo salvamento de sua irmã mais nova. Ele sobreviveu ao meu ataque de fúria, e acabou passando no teste. Ele não me faria mal, como nunca fez.

 Mas agora, diante de Trend, sei que devo ter medo. Isso porque ele é muito mais que Zero-Quatro e Jota jamais irão ser. Sua genética parece gritar "perfeição" de todos os ângulos. Desde a tez levemente bronzeada e macia até os lisos cabelos negros, que contrastam de forma feroz com os lábios grossos e avermelhados. Mas não é apenas sua beleza. Algo em seus profundos olhos cinzentos envia calafrios por minha espinha, incitando cada corpúsculo de meu ser a entrar no modo cuidadoso. Sua camiseta negra se estica sobre os músculos como se estivesse prestes a se arrebentar, e sua postura é a mesma conciliada a um felino de porte médio. Sua musculatura é poderosa, passos decisivos de quem sabe o que está fazendo e um olhar indulgente e calmo de quem entende tudo que vê. Um predador nato. Não existe nenhuma espécie de falha no escudo que ele representa. E isso me deixa impassível. Conseguir imediatamente detectar recursos para imobilizar Susanna, mesmo sabendo que não o faria me fez sentir segura. Mas diante de Trend sou impotente.

E odeio ser impotente.

Fui impotente por toda minha vida. E depois, sentir a pequena dose e sensação de poder ao acordar suscitou uma parte incisiva minha, que sempre sonhou em aniquilar a impotência. A mesma que agora se encolheu como um roedor diante da ratoeira. O aparato mais primitivo da caça à infestação insignificante. Os fracos sonham com a força. E não sabem o que fazer com ela quando a encontram. É a maldita lei do paradoxo que vive se desencontrando e criando pilhas e mais pilhas de puro caos por onde passa.

Os olhos de cristais de Trend ainda estão em mim, e minha garganta se comprime de um jeito estranho. Um jeito que não parece ter nada a ver com o switch acoplado em meu cérebro. Mas algo me diz que mesmo que minha capacidade de fala estivesse operante, eu manteria minha boca fechada. Respiro fundo, a sensação desvanece, e apenas devolvo seu olhar, assombrada com o fato de estar sustentando seu olhar pela segunda vez desde que o conheci. Mesmo tendo essa coisa estranha sobre evitar olhar nos olhos de outras pessoas, algo dentro de mim borbulha e me incita a negar submissão. E mesmo ciente da fatalidade de meu erro, não me permito baixar os olhos. Minha idiotice autêntica em grande escala. Ela nunca falha e sempre emerge para a superfície dizer um olá, ainda estou aqui, sã e salva!

― Vejo que está pronta para ingressar no clã. ― ele simplesmente diz, seus olhos deslizando por cada detalhe de minha estatura e voltando à meus olhos ― Aparentemente, o processo de melhoramento da E.M.I. foi um sucesso.

Me pergunto se essa é a boa notícia.

― Se o objetivo era me transformar numa mutante controlada, sinto que devo concordar... ― Murmuro baixo, xingando a mim mesma em pensamentos meio segundo depois. Não consigo controlar minha língua. Ela apenas trabalha sem minha permissão e tudo que posso fazer é morde-la como castigo.

INSÍGNIA_ Guerra Das Máquinas IWhere stories live. Discover now