QUATORZE

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       Depois de um dia inteiro sem tomar banho, lavar o cabelo foi de longe a parte mais difícil. Ele estava sujo, grudento e foi bastante complicado para desfazer o emaranhado de fios que se formaram ao longo dessas demoradas vinte e quatro horas. O fato dele ser tão grande ao ponto de chegar até a cintura só complicou mais ainda, foi muito difícil para lavar e deixa-lo tão limpo e solto como está agora. Mais ou menos uma hora inteira penteando com os dedos e desembaraçando fio por fio. Foi complicado, porém necessário. Com exceção do cabelo, já estou completamente seca e nada de Hiago voltar. Ele foi à procura de roupas para vestirmos, não creio que tenha levado todo esse tempo para arranja-las. Começo a me preocupar e chego a pensar que algo aconteceu com ele, eu realmente espero que não, espero que ele tenha demorado por qualquer outro motivo, menos esse que estou pensando.

Pode parecer preocupações bobas de uma garota rica, mas eu conheço minha realidade e sei que estou bem distante disso, portanto, não sinto vergonha ao dizer que estou preocupada com o estado do meu cabelo. Logo eu, que o cuidava como se fosse a coisa mais importante da minha vida e, de fato, era o que eu mais gostava em mim mesma. Era o que me deixava bonita, atraente, e me fazia me sentir bem ao olhar no espelho. Agora sei que seria quase impossível permanecer no jogo com ele da forma que está. Me faz sentir três vezes mais calor do que o normal, me atrapalhou na hora da luta e quando tentei escapar com Hiago, sem falar que meus fios estão estragados só com o dia de hoje, vários caíram durante o banho e fiquei um pouco chateada. Infelizmente, não dá mais. Graças a esse jogo ridículo vou ter que fazer algo que nunca pensei que faria em toda a minha vida.

Sem muita vontade, abro a mochila de Hiago e tento não vasculhar muito as suas coisas enquanto procuro algum objeto afiado, capaz de cortar alguma coisa. No meio da busca, encontro lençóis e vários tipos de tecido com inúmeras utilidades; desde proteger o rosto do sol até cobertores para dormir. Não sei onde nem como ele conseguiu isso tudo, mas foi muito espero em fazê-lo. Um pouco mais abaixo dos cobertores, encontro algo pontudo e metálico, ao pega-lo sinto o objeto frio tocar a minha mão e sei que vai ser esse o escolhido. Assim que o retiro do fundo da mochila, sem querer, um papel grosso cai ao meu lado. Quando pego e me preparo para guarda-lo na mochila, percebo que é uma fotografia, e Hiago está nela. É um dia de sol, sua mão está na testa para cobrir o sol enquanto ele sorri fazendo uma careta fofa. Ao seu lado, há um garoto. Aparentemente, da mesma idade que ele, porém parece ser poucos anos mais velho. Hiago está com o braço por cima do seu ombro e os dois sorriem, parecendo muito felizes. Lembro-me que ouvi Dimitri dizer que Hiago tem pessoas que ele ama lá fora, o que esse garoto da foto seja uma delas. Talvez ele seja seu irmão, ou até mesmo seu melhor amigo. Não sei ao certo, mas guardo a foto de volta no fundo da mochila antes que Hiago chegue e me veja mexendo em suas coisas pessoais.

Com a faca em mãos, me preparo psicologicamente para mudar a minha aparência por completo. Preciso me lembrar mais uma vez: Tudo por causa desse jogo idiota. Digo a mim mesma que vou usar isso para fazer meu ódio por eles aumentar cada vez mais – como se isso fosse possível. Se o meu cabelo era a minha identidade, o motivo pelo qual todos na escola e fora dela lembravam de mim, não sei qual será minha identidade agora. Talvez a dor e a má sorte de ter perdido um pai e estar nesse exato momento seguindo o mesmo caminho para a morte o qual ele foi obrigado a seguir. Uma identidade triste, pesada e cheia de pontos negativos. Eu só espero que a parte da minha família que Dimitri ainda não tirou de mim esteja bem, centrados o suficiente para conseguir seguir suas vidas sem mim, até eu sair daqui.

Um sacrifício pessoal para o meu bem-estar, não é nada, digo a mim mesma. Fico receosa, mas sei que preciso fazer isso se quero ficar mais alguns dias por aqui. Com a mão pendendo, aperto a faca firmemente e a levo até minha cabeça. Divido o meu cabelo em dois, pego a metade dos fios molhados com a mão esquerda e, com a direita, passo a faca bem afiada em um ponto exatamente na altura dos ombros. Ao fazê-lo, sinto que todos os fios dessa metade do cabelo já se soltaram. Não tenho coragem de olhar e coloco-os ao meu lado, no chão. Sinto vontade de chorar, mas não me permito fazer isso por um simples corte de cabelo. Eles vão crescer novamente, não há com o que se preocupar. Troco a faca de mão e pego metade do cabelo restante com a outra. Sem pensar duas vezes, deixo a lâmina cortar meu precioso cabelo. Quando termino, coloco os fios arrancados em cima dos outros, e permaneço sentada no chão, incapaz de encarar-me e sequer tocar o que restou do meu cabelo.

A CAÇA - OS ESCOLHIDOSWhere stories live. Discover now