Ao redor de Camila

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As pessoas não são muito distintas de pedaços de tiras. Os destinos não são muito distintos de nós. Extremidades que se encontram e se enlaçam, às vezes sem que saibamos bem por que, se há em seus nós alguma utilidade, finalidade; às vezes são nós confusos, cegos, surdos, insensíveis — sensibilidade mal conduzida. Podem se arrebentar, podem se soltar, ou podem querer voltar a ser uma tira independente. Podem simplesmente tecer um propósito. Ligar, criar.

Isso explica muito da história de Aline e de Alejandra.

Aline, que nem sempre foi conhecida como Aline. Que se descobriu Aline; uma Aline escondida, raptada em alguma noite do seu coração. Teve de aprender sobre as coisas da manhã, do céu e suas tantas cores possíveis, do que é ter medo de viver — e ainda assim viver.

Alejandra, que sempre foi conhecida como Alejandra. Que descobriu Aline antes da própria Aline — e sempre teve competência para isso de descobrir. Só nunca descobriu a si mesma, porque nunca foi preciso; porque não se descobre o que primeiro não se cobriu, como não se encontra o que primeiro não se perdeu. E Alejandra sempre foi muito Alejandra. Talvez tenha sido também muito do que se esperou que fosse Alejandra, mas isso poderia ir para conta da coincidência.

Viviam ambas em um bairro de classe média do Rio de Janeiro, mas, antes disso, quando ainda bebê, Alejandra — como o nome sugere — engatinhou por solos estrangeiros; abastecida por sangue hispano-americano, adquiriu o espanhol como língua nativa, e chegou ao Brasil sem qualquer dimensão do português. E, talvez, nesse momento, nessa mudança, ela tenha sofrido de alguma ambiguidade — ou um princípio do que poderia ter vindo a ser ambíguo, mas que nunca o foi de fato. Ao novo lar, os pais insistiam nos costumes e na fala, à rua, exacerbava-se o tropicalismo carioca, onde o clima fervia e as gargantas se arrastavam.

Talvez, tenha sido aí o nó. O improvável nó entre as polaridades, o calor e o frio, a verdade e a mentira, o eclipse — que é o nó do sol e da lua. No único momento de sua vida em que a Alejandra, ao chamar por si, era respondida por um coração barulhento, nesse momento, ela conheceu quem lhe oferecesse a outra ponta indispensável da tira. Um menino há época — ou assim dito —, que não apreciava o contato, mas que foi incentivado pelos olhos de fronteira distante de Alejandra.

O portunhol não era obstáculo, mas uma ferramenta para suas disposições. No fim, mesmo quando Alejandra já havia se adaptado — voltado ao estado de Alejandra —, a amizade prosseguiu; já meio invertida, como se brincassem de esconde-esconde — e a vez de se esconder de Aline casaria com sua adolescência.

A adolescência foi um período especialmente delicado. O quarto de Aline se reduziu a um ovo por não chocar. Sempre acortinado, espremido na meia-luz, o ar prisioneiro, tudo meio envelhecido, precocemente envelhecido. Cabia a Alejandra se infiltrar e lhe conceder características não hostis. Abria as janelas, legalizava o sol, e parecia ser ela quem tinha pincel e palheta, que inventava as cores propostas pela luz, que espantava o luto impertinente.

Foi lá pelos seus vinte anos que Aline se fez Aline. Ou melhor, começou a se fazer Aline. Primeiro o nome. Importante, mas pouco aproveitável. Isso porque não havia pessoas com quem compartilhá-lo, bocas para usá-lo. Seus pais não sabiam, ainda que o soubessem — porque não se podia evitar saber, não totalmente, mas apreciavam o que podiam preservar de ignorância.

Para Aline, a autodescoberta foi processo bifurcado. Por um lado, havia adquirido sua primeira identidade na vida. O que abriu suas cortinas e ventilou seu cômodo, sem que tivesse tido necessidade de Alejandra. Porém, também a imergiu num complexo de dúvidas e receios. Conhecer a si mesmo é passo essencial, exercer este conhecimento é caminhada estafante; muitas vezes através de terras inóspitas.

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⏰ Last updated: Mar 22, 2018 ⏰

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Meninas a respeito do amor (degustação - conto: Ao redor de Camila)Where stories live. Discover now