Capítulo I

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15 de outubro de 1915, Mato Grosso

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15 de outubro de 1915, Mato Grosso

Era uma noite de lua crescente, a primeira daquela lunação. Não haviam nuvens que impedissem os corpos celestes do firmamento de assistirem ao que aconteceria àquela noite, em uma aldeiazinha Xavante, a oeste da Serra do Roncador.

Escondido do lado de fora de um , o ritéi'wa, com seus dedos magros e cautelosos, afastava as tiras de palha de babaçu, que serviam a casa como cobertura, para fazer um pequeno buraco por onde pudesse observar o que se desenrolava no interior da moradia.

Tão logo julgou ser suficiente o tamanho da fenda que havia feito, ele fechou o olho esquerdo e aproximou dela o direito, apoiando superficialmente as mãos na cobertura da casa, bem ao lado de sua cabeça.

Fiapos de palha não lhe permitiam uma visão plena do interior do , mas, ainda assim, ele foi capaz de ver duas mulheres. Uma delas estava ajoelhada no chão e se escorava em uma das estruturas internas da casa, suava muito e fazia força, mas não emitia lamúria alguma, apesar de estar prestes a dar à luz. A outra mulher estava em frente à primeira a ajudando, era a sogra dela, aquela que faria o parto.

O ritéi’wa afastou seu corpo do e elevou a cabeça aos céus, dizendo aos seus deuses em pensamento:

“Sei que não devia estar aqui, mas preciso saber... Só pode ser essa a criança, eu sei, não tem outra mulher grávida na aldeia, então, não vai nascer mais nenhum bebê esse ano, mas eu... Eu preciso ver.”.

Ainda que um tanto distraído, voltou à sua posição anterior. Naquele momento, sua mente não traduzia nada do que seus olhos enxergavam; ele havia designado a ela a tarefa de convencer a si mesmo.

“O ai’uté é minha responsabilidade, eu sei, mais do que dos pais dele”, pensou, livrando-se de qualquer culpa que pudesse querer atormentá-lo, já que a tradição do seu povo não permitia que nem o próprio pai do bebê visse o parto.

Um choro baixo foi ouvido e ele recobrou toda a atenção que momentaneamente havia perdido, focando, enfim, no que há meses ele esperava acontecer; o nascimento do novo guardião do Santuário do Roncador. Ou, nesse caso, a guardiã.

As mulheres na casa olhavam admiradas para a criança que se encontrava sob os cuidados da avó. O seu nome, a sua mãe há muito já conhecia; havia sonhado com ele. Inaiê, é como ela seria chamada, embora não fosse passar pela cerimônia de nomeação, como todas as outras meninas da tribo. Sua mãe sabia que o seu destino era outro e também que seria longe dali.

O ritéi'wa avistou as marcas no corpinho moreno coberto de sangue e sorriu satisfeito.

Nas costas do neném, entre as pequenas omoplatas e em um tom acima da cor da pele dela, haviam pequenos pontos interligados que pareciam formar um mapa.

Em seu ombro direito havia outro desenho. Diferente do primeiro, esse formava um relevo superficial em sua pele, como uma cicatriz. Era formado por um círculo de bordas irregulares, cortado verticalmente por duas linhas curvas com losangos em suas extremidades. Na parte esquerda superior do círculo, havia uma forma que se assemelhava ao bico de uma ave e logo abaixo, na metade inferior, tanto do lado esquerdo quanto do direito, haviam traços diagonais quase simétricos. Por fim, havia ainda um círculo menor em meio às duas linhas curvas.

Ubirani, como era chamado aquele menino, se afastou da fenda outra vez. Foi inevitável não comparar as marcas da bebê com as próprias marcas que ele trazia desde o nascimento.

A de suas costas destoava bastante da marca do neném, mas não era como se ele conhecesse mais alguém na aldeia ou fora dela com quem pudesse comparar.

Quanto à marca no ombro da menina, bem, essa era mais semelhante à marca que havia no dorso de sua mão direita. À exceção do “bico de ave” e dos traços diagonais, elas eram praticamente idênticas.

As singularidades da marca dele, porém, se davam por uma pequena abertura no círculo externo por onde passava uma linha ladeada por linhas menores e intercaladas.

Ele passou os dedos pela ligeira protuberância na pele de sua mão, antes de voltar sua atenção novamente para o que acontecia dentro do .

Enquanto Ubirani olhava com orgulho o neném, lágrimas de emoção se formaram em seus olhos.

Depois disso, ele não se demorou muito mais ali, afinal, já havia cumprido o que se comprometera a fazer àquela noite.

Não que ele tivesse duvidado em algum momento que aquela era a criança certa, mas o sentimento que lhe preenchia o peito, o sentimento de proteção para com ela, conseguia ser mais forte do que qualquer coisa.

Ubirani saiu despreocupado de onde estava escondido, mas muito ansioso.

Ansioso, pois só lhe restava esperar que a neném crescesse para que pudesse, enfim, ensinar a ela tudo o que ele sabia e que ela também precisava saber.

Embora, de fato, o tudo que eles mereciam saber não fosse nem de longe o que ele sabia e ensinaria a ela.

Mas certamente o que eles ainda seriam capazes de descobrir.

Mas certamente o que eles ainda seriam capazes de descobrir

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*Ai'uté: “neném”, “bebê”;

*: “casa xavante”;

*Ritéi'wa: “rapaz iniciado; faixa etária dos rapazes após a cerimônia de furação de orelha, quando saem do Hö e retornam ao convívio social”.

Áquila - O Destino dos Viajantes - Volume 1Where stories live. Discover now