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Oh, consciência covarde, como me atormentas.

Acordei naquela manhã com a convicção de que precisava falar diretamente para minha irmã que o que estávamos fazendo era errado. Absolutamente errado e estúpido.

Era inevitável que o Vinícius descobrisse. Bastava alguns minutos de conversa com ela pessoalmente e tudo ficaria claro. Minha irmã era inteligente, mas não era do tipo que lia literatura clássica e colecionava citações. Fora que, mesmo que houvesse a ínfima chance de ele não descobrir e tudo dar certo entre os dois, era esse um segredo que ela gostaria de guardar para o resto da vida? Será que uma gigantesca mentira era uma boa base para um relacionamento?

Fingir que eu era minha irmã foi definitivamente a coisa mais idiota do mundo a se fazer e não sei como aceitei entrar nessa furada.

Rafa estava diante do espelho de corpo inteiro, afixado na porta do armário, pintando os lábios com o capricho digno de uma Capela Sistina, quando estendi o celular para ela e disse:

— Quando você e ele se encontrarem hoje, você vai falar a verdade. E, se não falar, eu falo.

Ela parou e me encarou pelo espelho, os lábios entreabertos pintados pela metade com um vermelho vivo. Ela se virou para mim com as bochechas em chamas antes de responder:

— Você não está falando sério, né?

— Se eu não estou falando sério? Meu amor, você já ouviu falar de Cyrano de Bergerac?

Ela franziu o nariz.

— É aquela história do francês com o narigão?

— Do poeta inseguro... — corrigi, aprumando a postura. — Que ajuda o amigo a conquistar uma moça usando suas palavras.

— O que tem?

— O que tem é que é o arquétipo da nossa situação! O "estou rindo, mas estou chorando" original, porque é uma comédia e é uma tragédia miserável! Ninguém sai vencendo nessa situação. Três vidas arruinadas, almas dispersas, amores divididos, sofrimentos prolongados e por quê? Por medo, insegurança, arrogância, mentiras, a incapacidade de se comunicar. É sério. Você quer mesmo que sua vida seja um clichê? Um drama barato que poderia ser prevenido?

Seu rosto relaxou repentinamente e seus lábios se contraíram num meio-sorriso sem humor.

— Acho que você está dramatizando um pouquinho a situação.

Mantive a mesma expressão que eu tinha antes. A testa enrugada, os olhos arregalados para expressar a seriedade do que estava falando. Mas não disse nada na expectativa de que ela se explicasse.

— Não precisa ser tudo questão de vida ou morte, Tata. Meu Deus, você leva tudo muito a sério. Não vou casar com o cara. Se a gente der uns pegas, já vou ficar feliz — falou, antes de voltar a pintar os lábios.

Comecei a ficar agitada.

— Oh, céus. Em primeiro lugar, jamais diga "dar uns pegas" para ele. Segundo, você é muito inocente se acha que ninguém sai prejudicado nesse tipo de envolvimento. Seja ele ou você. Sempre alguém acaba pagando o preço quando se usa o romance como entretenimento. Alguém sempre se machuca. — Eu estava ofegante e não entendia por que. — E eu não quero ser cúmplice disso.

— Tata, acorda. Isso não é um livro. Estamos no ano de dois mil e dezoito. Ninguém morre de coração partido. Pessoas se pegam a torto e a direito e estamos todos bem, não estamos?

Estamos todos bem?

Eu sabia que se piscasse os olhos a umidade que se acumulara neles despencaria sobre as bochechas. Estamos todos bem? O Fernando provavelmente estava.

Ele nem sequer gaguejou.

Você não achou que a gente ia casar ou algo assim, achou? Pelo amor de Deus, Rê. Nós somos tão jovens, ainda temos que viver muita coisa.

— Eu achei que você me amava.

— Amava, oras. Amei o tempo que passamos juntos.

Meu coração virgem e desprotegido sangrou naquele instante.

— Você é igualzinho a eles. A todos eles — eu disse, desacreditada. — Como os versos da peça que você me levou pra ver.


Não suspirem mais, mulheres, não suspirem mais,

Os homens sempre foram enganadores,

Um pé no mar, e outro, na margem,

Nunca constantes em coisa alguma.


— Você não está sendo justa. Afinal, você também se divertiu, não se divertiu? Vai. Não estraga a memória do que tivemos com drama agora.

— As falhas dos homens eternizam-se no bronze — recitei, entre soluços — as suas virtudes, porém, escrevemos na água...

Ele encostou os lábios na minha têmpora e sussurrou no meu ouvido:

— Suas virtudes estão escritas na minha pele. E jamais serão apagadas.

Só para garantir que estávamos entendidos escrevi um tapa na cara dele na expectativa de que minhas digitais tampouco jamais fossem apagadas.

— Tata? — A voz da minha irmã interrompeu minhas lembranças. — Você está em silêncio há cinco minutos. Mais alguns segundos e vou começar a achar que você está apaixonada pelo Vinícius e tudo isso é ciúmes.

— Certo. Em primeiro lugar... oi? Você é louca? Eu estou conversando com o cara há menos tempo do que dura uma maratona da versão estendida da trilogia Senhor dos Anéis, o que significa que numa maratona eu já teria mais tempo de relacionamento com o Frodo do que com o bendito. Seria não só absurdo como impossível, mesmo que ele fosse literalmente o Shakespeare do WhatsApp e não apenas o citasse.

— A dama protesta em demasia, me parece — ela rebateu imediatamente.

Meu suspiro surpreso saiu entrecortado com um vibrato de humor.

— Olha as frases que ela aprende. — Comecei a rir com uma certa dose de orgulho.

— Eu presto atenção — minha irmã falou baixinho, com um sorriso constrangido no rosto. — Só às vezes parece que não. — Ela deu de ombros.

Nós duas silenciamos, trocando olhares de cumplicidade e carinho.

— Rafa... — Fui eu quem quebrei o momento especial. — A gente precisa falar a verdade.

Ela choramingou como uma criancinha.

— Pode ser amanhã? — Ela fez um beicinho trêmulo. — A gente não pode deixar o Vinícius gostando de mim só por um dia? O que é um dia diante da eternidade? — Ela mostrou os dentes num sorriso forçado e penitente.

— Eu conto pra ele ou você conta? — perguntei, sem me deixar convencer. Foram anos de imunização contra a manipulação de uma irmã mais nova delicada e fofa.

Ela olhou para o chão e reposicionou o peso do corpo do calcanhar para o antepé, sem se desequilibrar do salto.

— O celular era meu. A mentira foi minha. Eu conto — ela falou, com mais seriedade e pesar do que já vi minha irmã expressar na vida.

Estendi o aparelho para ela e ela o tomou. Senti algo ser arrancado de mim no momento em que ele passou para suas mãos. Era o peso da culpa certamente. Mas, também, o último brilho de uma possibilidade distante. Um Multiverso que se apagou. A escolha feita, a sentença dada e um adeus para um futuro remoto que nunca existiu. Não de verdade.

No caminho todo para a escola, não consegui ler livro nenhum. Só percebi perplexa, pela primeira vez, a quantidade de skatistas que havia na nossa cidade e quantos deles escolhiam o skate como meio de transporte para a escola.

E lamentei secretamente que, mesmo com todo o cuidado, em nenhum momento quase fui atropelada.

* * *

Próximo capítulo: Terça-feira! (Ou 50 estreliiiiinhas - gente, divulga pros amigos / pras amigaaaas)

Prove que não é um robô (conto)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora