Capítulo I

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As estrelas faziam questão de iluminar cada fio preto de seus longos cabelos. O céu sempre cinzento de Jotunhein fez o filho perdido do trono querer fugir; pra longe daquele reino gelado, mas principalmente pra longe do seu passado. Loki não havia escutado nada além de mentiras sua vida inteira, e embora desejasse profundamente esquecer suas origens, teria que enfrentá-las primeiro.

Caminhava sozinho, como sempre. O som de suas longas e grossas botas competindo com as nevascas distantes. Seu semblante não deixava passar nem uma dica do quão assustado realmente estava, como havia se acostumado a fazer. Poderia esconder de toda alma vivente, mas ele próprio tinha noção de que não fazia idéia do que iria acontecer nas próximas horas.

O deus da trapaça se divertia com suas artimanhas, e orgulhava-se de estar sempre pelo menos 10 passos à frente de todos. Mas não dessa vez. Estava completamente indefeso e saber disso o inquietava tanto quanto acalmava, dando-lhe uma certa ilusão de liberdade.

Seu pai havia morrido. Seu pai biológico, Laufey, a segunda ou terceira criatura que ele mais odiava. Odin estando indiscutivelmente em primeiro, faltava-lhe apenas decidir se odiava seu irmão ou não. Naquele momento, era a menor das suas preocupações.

Como de costume, todo o povo se reune em um torneio sangrento para decidir o próximo governante. Sendo o único filho do falecido Rei dos gigantes de gelo, ele era obrigado a lutar contra o vencedor do povo. Caso contrário, teria de viver o resto da vida como fugitivo da sua própria raça.

Entre as regras da competição, havia essa: torna-se Rei quem sobreviver. E mais nenhuma.

Caminhava propositalmente em direção às ruínas do templo. O lugar era pequeno, escuro e cheio de lugares para se esconder ou manifestar suas ilusões. Mas andava devagar, também propositalmente. Queria ele assumir o trono? Não. Disso tinha certeza. Queria pelo menos viver por mais um dia? Para essa pergunta, Loki tinha suas dúvidas. Por isso, rumava sem pressa pelas longas planícies de Jotunhein, onde era uma presa fácil e em desvantagem.

Parou imediatamente, quase paralisado, quando escutou uma grossa e alta gargalhada. Prendeu a respiração ao notar os lentos e pesados passos em sua direção.

Virou-se para trás, e viu uma enorme figura saindo de dentro de uma caverna. Ymundr, o vitorioso do povo se estendeu gloriosamente sob seu olhar. Em vez de temor ou desespero, o príncipe renegado encontrou outra coisa na lâmina do machado que pairava sobre ele. Esperança.
Havia um motivo para ele sempre estar incontáveis passos a frente de seus oponentes. E nem sempre era preparação. Sua mente era brilhante e pensava rápido, transformando sua incerteza em sua maior força. Não desejava se apossar do trono, mas talvez ainda lhe sobrasse alguma motivação pra não expirar naquele momento.

Loki Laufeyson viveria. Viveria pois merecia, e porque um plano mirabolante como o que gravitava diante dele não deveria ser deixado de lado. Por isso, não desviou quando aquela lâmina esmagou-lhe o coração.

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"Há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia" - William Shakespeare

Noah não era particularmente fã das frases que abriam os capítulos do livro da aula de filosofia. Na maioria das vezes, implicavam que não há mais na vida do que sentimentos incertos. Afinal, não havia entrado em uma faculdade de psicologia para sentir as mentes das pessoas, e sim para entendê-las. Mas essa frase lhe chamou a atenção. Tanto que mal conseguiu prestar atenção na aula daquele dia.
E agora, deitada na cama com o relógio marcando 3 da manhã, as palavras vinham lhe atormentar os pensamentos.

Muitos atribuíam àquelas palavras a crença em seres sobrenaturais, Como fantasmas e coisas do tipo. Mas será que não havia algo além? Tipo, bem além mesmo, onde as estrelas mais distantes ainda brilham?

Ainda não acreditava com total confiança na frase quando sentiu seu corpo flutuar, como um pequeno objeto submetido a um imenso ventilador, e sua pele se recusava a tocar nos lençóis. Os primeiros segundos foram refrescantes, como uma leve brisa de primavera, mas então veio o cansaço.

Um milhão de cavalos pisoteando-lhe os músculos não seriam suficientes pra deixá-la num estado similar. Mas nada comparava-se à dor que sentia na cabeça. Podia jurar que naquele momento seus olhos haviam saltado pra fora e seus fios de cabelo arrancados um por um. Teria certeza de que o conteúdo guardado pelo crânio tinha explodido, se não precisasse dele para testemunhar toda aquela agonia. Não aguentou e desmaiou ali mesmo, obrigando por fim seu corpo a fazer as pazes com o colchão.


Era um homem, com certeza. Mas onde? E por que? Onde estava ela após aquela noite sem descanso? Os olhos do desconhecido a faziam se sentir culpada. Pelo que? Quem era ele? Mas ele não se importou, pois continuou examinando-a fixamente. O que você quer? Ela perguntaria, venceria o nó que sentiu se formar em sua garganta e perguntaria, se ao menos estivesse lá.

Seus olhos, esmeralda. Sabia de pouca coisa, mas tinha certeza de que eles eram tão bonitos quanto afiados. Cortaram-lhe a face e se aprofundaram, rasgando a carne mais e mais até que...

Bateu a cabeça no forro da cama de cima por ter se levantado tão rápido. Acordou com o coração assustado e custou controlar a respiração afobada. Teria pegado no sono antes ou depois do sentimento de flutuar? Tentou associar a dor de cabeça ao cansaço e à batida na beliche. Mas doía demais. E não dormiria mais naquela noite, disso não tinha dúvidas.

Haveria então de se distrair, e tratou de fazê-lo. Afinal, o seminário pra segunda não se escreveria sozinho. Leu três frases e meia do livro antes de perder o foco e começar a rabiscar as páginas.

Estava naquele estado febril de quem acabou de acordar e portanto não tinha muita noção do que estava fazendo.
Quando tomou consciência, já eram inúmeros pares de olhos que ela mesma havia desenhado. Aqueles olhos. Rabiscou todos. Nenhum deles se aproximava dos originais, embora nem ela sabia ao certo como eram.

Lembrou-se de ter lido certa vez que o cérebro humano não é capaz de criar um rosto inteiramente novo. Poderia juntar o nariz do seu vizinho, a boca da sua professora de educação física e os olhos daquele ator famoso da TV, mas todos esses teriam que ter passado pelo seu campo de percepção primeiro.

Mas onde é que ela poderia ter visto aqueles olhos?

Certamente se lembraria. Afinal, não eram normais, nem podiam ser nada menos do que de outro mundo. Outro mundo? Ela se surpreendeu com a própria mente. Não sabia mais no que estava pensando, como se sua trilha de pensamento houvesse se desencaminhado como um trem pra fora dos trilhos e estivesse agora capotando montanha abaixo. Essa própria comparação não fazia lá muito sentido, assim como ela inteira se sentia.

Talvez algum tipo de alienígena tenha se apossado da sua consciência, pra variar.

O Hóspede Invisível | LokiWhere stories live. Discover now