Uma Conversa Franca

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      Rente ao parapeito da varanda, eu fecho os olhos para absorver a energia dos últimos raios de Sol. A brisa vespertina faz cair uma mecha de cabelo castanho no meu rosto. Me pergunto como a vida seria se ela fosse tão simples quanto o crepúsculo. Abro os olhos para ver as últimas rajadas de laranja e tons de rosa do dia.

      A lua é teimosa, ansiosa. Não espera que o Sol se ponha por completo para poder aparecer. Ela já está na direção oposta, me encarando. Chego a perguntar se ela nos observa por diversão ou por pena. Sua silhueta ainda se mistura ao azul do céu que vai enegrecendo ao passar os momentos. A floresta tem a honra de escurecer primeiro, seus contornos negros permitindo as cores alaranjadas iluminá-la uma última vez é uma obra-prima da natureza.

      Tic-tac. Tic-tac. A melodia da inquietação. Posso ouvir o relógio que fica no corredor me avisar de que as horas passam no mesmo compasso eterno, mas para mim elas se arrastam, rastejam no tempo espaço. Madrinha já se recolheu, meu pai está sentado no alpender fumando cachimbo e Pedro foi ao Refúgio, não sei se voltará hoje já que não quis ir com ele desta vez. Já faz uma semana e meia que venho limpando a velha escola para festa de São João, finalmente consegui terminar, seu Matias já repintou as salas e seu sobrinho restaurou desde as paredes ao piso do pátio, Marcos e seus homens se livraram dos brinquedos mas deixou o playground no lugar, algo o irritou quando viu aquele lugar restaurado mas não faço ideia do que pode ter sido, amanhã começo a decoração.

      Ouço a porta do quarto do meu pai ranger e vou para a cama. Não durmo por muito tempo, só até a meia noite. Hoje o céu está limpo, sem nuvens. É possível ver o caminho de santiago com muita clareza e é lua cheia. Preciso desabafar. Não posso contar tudo para Cecília, e, Pedro certamente não me compreenderia. Desço as escadas com cuidado, destranco a porta devagar, o coreto está iluminado apenas pela lua, e é o lugar perfeito para o nosso encontro hoje.

      Seu rosto está tão pálido quanto sempre foi. Ela me encara calada, como de costume. Já faz um mês que não falo nada a ela, todas as noites estou cansada demais para negar algumas horas de um sono bem dormido. Sigo seu exemplo silencioso enquanto escolho bem as palavras, seu olhar gélido me faz lembrar que esqueci meu casaco. Os únicos sons que ouço são os grilos, o vento silvando e meu próprio coração, batendo tão forte que acho que ela poderia me ouvir se não estivesse a milhares de quilômetros acima de mim.

      - Há quanto tempo. - sussurro mais para mim do que para o vento (um outro amigo da noite)- Se soubesse o que a vida aqui embaixo pode se tornar teria certeza de que seu olhar para nós é de compaixão. - inspiro, expiro. Preciso colocar isso para fora de qualquer jeito. - É difícil transformar em palavras, bom, quando quer que algo se torne real é preciso ouvir saindo dos próprios lábios. Mas talvez seja esse o problema, não quero que seja mais real do que já é, talvez eu só queria estar sonhando, ou tendo um pesadelo, ainda não sei como julgar.

      O vento balançando meu cabelos e se parece mais com o toque de uma pessoa. Mas a lua continua a me olhar, plena, impassível, ela não é tão amigável mas é uma boa ouvinte e confidente.

      - Já faz mais de uma semana. - as palavras vão saindo - Pedro me levou a um lugar que chamamos de Refúgio. É antiquado, o lugar. Uma espécie de biblioteca subterrânea. Mas esse não é o verdadeiro problema. Eu fui lá algumas vezes e há, em um dos cômodos, livros (meio óbvio), mas são diários na verdade. Estão organizados por prateleira e cada um pertenceu a um ou mais ancestrais de cada família importante da cidade.

      Diários. Os segredos que os aristocratas não sabem ou fingem muito bem. Provavelmente a segunda opção. Já é errado eles ainda existirem, eu saber onde estão, quanto mais lê-los.

      - Duas opções: seguir minha vida na ignorância e segurança ou ser uma arma ambulante. Posso seguir o exemplo dos senhores e fazer como se nada tivesse acontecido, ou usar essa benção, ou maldição, para despertar no povo a verdade e desmascarar aqueles que pensamos terem seus "direitos" naturais sobre nós.

      - É uma escolha fácil.

      - Quem dera. - ele está com os olhos arregalados e suando frio, a passos ágeis e silenciosos se esconde no coreto e me envolve num abraço. - O que ouve?

      - Shiiiii. - logo me calo e meu irmão aponta na direção de onde veio. Uma silhueta atrás das árvores é o bastante para eu entender, ele quase foi pego.

      Ficamos um bom tempo encolhidos até que seja lá quem fosse, o homem vai embora. Assim que trancamos a porta de casa vamos até seu quarto.

      - Quem era?

      - Não sei. - responde rispidamente enquanto que espia pelas cortinas entreabertas. - Mas estava perto da entrada do jardim, não me viu passar mas não consegui ser perfeitamente silencioso.

      - Tá brincando, né? Não podia esperar até amanhecer?

      - O que estava fazendo no coreto em plena madrugada?

      - Não muda de assunto, Pedro!

      - Eu sou louco o bastante para fugir do toque de recolher mas você não tem motivo algum para estar fora de casa depois da meia noite. - seus olhos escurecem e entendo o que ele pensa.

      - Você não entenderia.

      - Acha mesmo?

      - Não venha bancar o irmão preocupado, nem saí do jardim.

      - Você pode não ter saído, mas quem era aquele homem?

      - Sei tanto quanto você. -  nos encaramos como se estivéssemos brincando, sequer piscamos. Ele enfim baixa a guarda e me abraça.

      - Me desculpa, eu só...

      - Eu sei. - corto o papo meloso antes que ele possa fazer um discurso. Me desvencilho dos seus braços e o deixo com seus pensamentos.

      Volto para a varanda do meu quarto e suspiro. Uma nuvem despreocupada em interromper meu desabafo, que agora o faço em pensamentos, cobre a lua sutilmente. Como se o próprio farol da noite se despedisse, sussurro em resposta.

      - Até a próxima.

      As cortinas brancas balançam com vento e eu aceno para o nada. Só um detalhe na paisagem adormecida destoa da serenidade costumeira, o homem misterioso está de pé no quintal, envolto num manto preto, o brilho das estrelas seria possível refletir seus olhos que brilham por si só, há um lenço igualmente preto cobrindo metade do rosto deixando apenas as duas esferas verdes visíveis. Será que ouviu meu desabafo? Ele me dá as costas e caminha em direção à trilha que corta o bosque e vai em direção à cidade. Me seguro no ímpeto de chamá-lo ou segui-lo. Só tenho duas certezas: amanhã vou passar a noite no refúgio, Pedro pode me dar cobertura em casa, e, de alguma forma, esse homem sabe de alguma coisa e tenho a necessidade de descobrir quem ele é.

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