Injustiça

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Inquietação nunca foi um sentimento que dominou tanto o jovem corpo de Kenny quanto agora. Era a terceira noite naquela semana que o frio rigoroso do outono, junto com um punhado de pensamentos desconexos, roubavam-o o sono e deixavam-no em um estado de desconforto.

Já havia perdido as contas de quantas vezes seus olhos violetas tentaram contar as ranhuras em suas paredes geradas pelo papel de parede gasto, usando-as como substitutos dos carneiros, em uma tentativa de fazer o tédio predominar e o sono carregá-lo. Mesmo com seu impeto em fazê-lo, tudo o que conseguia obter era o amargo sabor da frustração descendo por sua garganta.

Em sua mão, coberta por seu fino edredom marrom, agarrava com força o medalhão prateado, sentindo-o ferver junto a sua raiva. O brilho que a peça tinha já havia sido destruído por algumas dúzias de impressões digitais, mas os dizeres continuavam fortemente impressos. "Melhores amigos" eram as palavras que formavam em seu medalhão quando acompanhado da outra metade. Eram epígrafes singelos, mas na época que comprara esse para presentear o dono da outra metade, acreditou verdadeiramente no peso dessas.

Kenny era estúpido, mas por menor que fosse o seu intelecto, tinha plena noção de suas limitações e da sua burrice quando comparado aos colegas. Nunca havia ficado na final do concurso de soletrar ou conseguira uma premiação nos eventos de oratória, sua melhor nota havia sido em uma aula de artes, na terceira série, e isso apenas ocorrera porque no dia em questão o trabalho fora feito junto do Craig Tucker, que optara por um vídeo sobre pequenos animais com chapéus, especialidade do rapaz gay.

Não sabia, entretanto, se eram as suas insuficiências acadêmicas as culpadas pela situação que vivia agora. Talvez, se tivesse tanto dinheiro quanto os Blacks ou a mesma força devastadora do Broflovski, seu destino fosse um pouco diferente, só que uma grande parte de seu âmago culpavam terceiros pelo seu infortúnio.

Desde que tomara consciência sobre a sua própria vida, notara que sua existência era repleta de falhas, sempre tomada por coisas que faltavam. Em sua casa faltava um sistema de aquecimento, em suas gavetas um uniforme de educação física, em sua boca um dos dentes e em suas mãos a metade da sua única amizade verdadeira. Essa última, porém, diferente das outras, antes existia, tornando a sua falta mais penosa que as demais. Era como diziam os velhos ditados, não? Melhor nunca ter dito do que ter e ter perdido.

Afundou o seu rosto no travesseiro, permitindo-se gritar, tendo o som devidamente abafado. Por mais que desejasse não pensar no que ocorrera mais cedo, as memórias martelavam em sua mente com tanta força que furtavam sua sanidade cruelmente. Havia sido traído, visto a pessoa que mais apoiara virar-lhe as costas como se sua presença fosse completamente insignificante.

Desistiu de tentar adormecer, erguendo-se e caminhando em direção da sua velha caixa de brinquedos, abrindo-a com o devido cuidado para não acordar seus irmãos no cômodo ao lado. Entre os poucos brinquedos quebrados que guardava nesse, localizou seu antigo caderno de desenho, pegando-o para ver os rabiscos que fizera com caneta em suas páginas.

"Mysterion" estava escrito no topo de um dos desenhos, aproximando-se um pouco mais da janela para que o poste da rua iluminasse o esboço. Um sorriso singelo se fez ao encarar a folha, observando suas anotações e cada uma das peças de sua fantasia desenhadas. Recordava-se bem no dia que criara seu alter-ego, precisando implorar para sua mãe deixar usar a antiga cortina da sala para fazer a capa do seu personagem.

- Era para ser nosso - murmurou, encarando mais uma vez o seu medalhão.

Quando Eric levou pela primeira vez o seu projeto de herói, "Guaxinim", e convocou o grupo para participar de sua brincadeira, ninguém realmente prestara atenção em sua proposta. Por mais que o gorducho tivesse ótimas ideias para jogos, todas as vezes que colocava-as em prática, acabavam saindo do país ou sob vigilância do governo. Era difícil confiar nele, isso é, na visão dos outros. Kenny acreditava no Cartman.

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