UM

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Está chovendo lá fora.

O céu está chorando durante horas e não faz menção nenhuma de parar. O frio caiu drasticamente e ninguém apareceu para me oferecer um cobertor ou um casaco.

Estou abandonada nesse lugar há dias.

Eles não falaram comigo. Não disseram nada, apenas me pegaram e me coloram dentro dessa sala que mede menos de 4m² onde só cabe uma cama, a qual evito usar, e nem sei bem a razão. Só me sentei nesse chão frio em cima desse piso arranhado e me encolhi, tentando pôr os últimos anos da minha vida em ordem.

Um raio parte o céu e eu olho para cima. Encaro a pequena janela que não mostra mais do que um filete minúsculo da escuridão que é a noite. O barulho da chuva é diminuído por conta do vidro que vem logo após as barras de ferro da pequena janela, mas ainda consigo escutá-la, e aumenta a cada segundo.

Quando o barulho do trovão chega tremendo as paredes, eu sei.

Descubro que sempre soube.

Eu sou uma assassina." "

Um arrepio corre pelos meus braços, desce pela minha espinha e eu me encolho mais. Percebo que estou tremendo e não sei se é de frio ou de medo. Estou tremendo e me recuso a chorar.

Não posso chorar. Não posso... Não depois de todos esses anos.

Me lembro perfeitamente da última vez que chorei. Tive que aprender a ser assim; forte, firme, tudo por conta do meu pai. O Superior de todo Novo Estado. Uma nação inteira de pessoas que estavam morrendo por doenças que ficavam cada vez mais frequentes. Uma nação inteira de pessoas que matando uma a outra por comida. Uma nação inteira onde o amor ao próximo entrou em extinção e tudo o que sobrou foi um povo destruído.

Mas meu avô a reergueu. Um homem influente ergueu o Novo Estado e meu pai a herdou, e é assim que tudo isso é chamado hoje. Com ele assumindo o comando, veio suas promessas, seus projetos, sua superioridade. Prometeu saúde. Prometeu acabar com a fome. Prometeu acabar com a guerra, com o desemprego, com a doença. Ele prometeu, e as pessoas desesperadas o ouviram. Acreditaram em cada palavra que disse, mas hoje, sofrem pelo o que acreditaram.

Não as culpo. Quando estamos desesperados, procuramos qualquer palavra positiva que possa nos tirar daquele sofrimento, e quando encontramos, dedicamos todas nossas forças nessa idéia, somente pelo pensamento do sofrimento acabar um dia.

Mas o meu sofrimento nunca acabou.

Eu recebia sua visita uma vez ao mês, e era nesses dias que minha mãe chorava de desespero. Era nesses dias que ela tentava me esconder, tentava enfiar uma doença em mim, desejava que pudesse sair da nossa casa que parecia mais uma fortaleza. Mas ela não tinha poder, e até mesmo eu sabia disso.

Meu pai entrava, tirava o seu paletó, o deixava em cima da cadeira e andava por sua sala com indiferença, relaxado, como se não tivesse prestes a fazer o que iria fazer.

— Estou fazendo isso para o seu bem. – ele dizia enquanto se livrava das suas abotoaduras e erguia as mangas da blusa social até os cotovelos. – O mundo lá fora não foi feito para pessoas fracas, e não pense que eles vão pegar leve com você só por ser uma menina idiota e fraca. Está me escutando?! – a essa altura ele já estava gritando junto ao meu rosto.

Nunca vou esquecer aqueles olhos duros, impenetráveis. Aqueles poços de crueldade, sem resquício de piedade ou amor. Nada.

E de mês em mês eu era açoitada com seu chicote. De mês em mês ele me levava para sua sala, me prendia de costas para ele, tirava a minha blusa e depois de fazer todo o seu discurso, me açoitava. Cinco, dez, quinze vezes.

Às vezes mais.

Às vezes menos.

— Quando você aprender a lição, isso vai acabar.

Que lição?!, eu queria perguntar, mas não podia questioná-lo. Nunca ninguém podia questioná-lo, então abaixava a cabeça e deixava o sangue escorrer por minhas costas enquanto meu rosto se derretia em lágrimas.

Até que eu aprendi a não chorar.

E foi essa a lição a qual ele dizia.

— Depois de todos esses meses, Lorely. – sussurrou com um sorriso nos lábios quando se agachou na minha frente. – Depois de todo esse tempo você aprendeu. – o Superior segurou meu rosto com força e o ergueu a procura de alguma lágrima, mas tudo o que achou foi meu rosto seco. E um par de olhos cheios de ódio. – O mundo não gira mais com compaixão, fraqueza ou amor. É esse ódio que brilha nos seus olhos que vai fazer de você alguém.

Foi isso que ele sempre quis. Que eu me tornasse alguém tão cruel e duro quanto ele. Que aprendesse desde sempre que sentir não nos leva a nada, e o modo mais prático que teve foi me torturando. Me mostrando que o ódio pode me levar á lugares incríveis. Que o ódio pode fazer coisas inexplicáveis com o meu corpo.

Quis que eu o odiasse.

E conseguiu.

Estremeço no chão de novo e aperto os braços contra o corpo que agora está magro. Não estou sendo bem alimentada e percebo que talvez não tenham se passado apenas alguns dias.

A lembrança do rosto do Superior me traz de volta, e junto com a lembrança vem o incômodo nas costas. Minha pele nunca mais foi a mesma. Um mar de cicatrizes profundas de tamanhos e lados diferentes tomando conta de toda extensão das minhas costas que agora não parecem mais costas. Somente três pessoas no mundo sabem delas. Uma está morta. A outra também.

Só sobrou a mim.

Fico feliz que seja a última a saber sobre esse meu segredo, e mais feliz ainda por saber que não posso as ver. Não sem a ajuda de dois espelhos, mas mesmo assim sei que não seria capaz de juntar dois espelhos para ver o estrago físico que meu pai fez em minha vida.

Como se já não bastasse os estragos emocionais e mentais que me assombram todos os dias.

Obrigada, papai. Sua filha se tornou um monstro. 

SHADOWS - Livro IWhere stories live. Discover now