Melanie

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Naquela tarde, quando virei a esquina de casa, já percebi que algo estranho estava acontecendo. Nosso bairro é o mais tranquilo e seguro da cidade e a maioria das casas da rua onde moro ou estão vazias, ou ocupadas por idosos. Esse foi, sem dúvidas, o principal motivo pelo qual meus pais escolheram trocar nosso apartamento enorme e movimentado por ela.
Eu gostava mais do apartamento, uma vez que ficava no mesmo condomínio onde Gabriel mora, e não nos desgrudávamos quase nunca. Mas sabíamos que para Martin mudar-se para um local onde tivesse um pátio para correr e brincar, e uma vizinhança mais silenciosa, seria bem melhor e, desde que me lembro, todas nossas decisões são em prol do que é melhor para ele. E quando vemos ele feliz, correndo de um lado para outro e se lambuzando na terra molhada depois de um dia de chuva, temos mais certeza ainda de que não podíamos ter escolhido lugar melhor para vivermos.

Entretanto, naquele dia, "silenciosa" era a última característica que poderíamos usar para descrever aquela rua. Havia um caminhão de mudança, pessoas descarregando esse caminhão e um carro com as portas abertas tocando um som alto demais até mesmo para que pudéssemos distinguir que música era.

Junto ao barulho atordoante da música, somava-se sons de uma furadeira funcionando, alguém batendo com martelo e uma mulher gritando. Para qualquer pessoa já era barulho demais, mas para Martin era o equivalente à tortura.

Acelerei o passo e quando abri o portão já pude ouvir seus berros desesperados, tentando ser acalmado por minha mãe que à essa altura já estava chorosa também.
Entrei e vi que Martin estava com a testa manchada de sangue, provavelmente por outra de suas crises onde bate violentamente com qualquer coisa que encontrar pela frente em si mesmo, como se assim pudesse fazer o que lhe perturba parar. Ele estava em cócoras, com as duas mãos nos ouvidos, e mamãe sentada próxima à ele falando coisas tranquilizantes sem sucesso.
Cheguei calmamente e o abracei de um jeito firme, como ele gosta de ser abraçado. Ficamos assim por um bom tempo, até o choro foi cessando, então peguei seus blocos de montar e O ajudei a organizar do modo que mais lhe traz paz: separados por tamanho e cor.
Entretanto, o som continuava ensurdecedor, e por mais que Martin tivesse parado de chorar, eu sabia que aquilo tudo ainda o perturbava, bem como há todos nós. A situação então se prolongou até que perdi a paciência e resolvi ir até meus novos vizinhos reclamar.
Não era a forma mais simpática e dar boas vindas, mas àquela altura eu já estava com os nervos à flor da pele e quando me dei por conta, já estava lá, esmurrando a porta.
Bati algumas vezes até que o som finalmente abaixou, e quando pensei em voltar correndo antes que alguém atendesse, uma vez que agora já tinham baixado, um rapaz abriu a porta.
O garoto deveria ter minha idade e era lindo. Aparentemente, tinha acabado de sair do banho, pois estava com os cabelos molhados e despenteados, e o cheiro de shampoo e perfume chegaram até mim junto com sua voz suave. Quase sem perceber, cruzei os braços, arrependida por nem ter trocado o uniforme da escola.
- Olá! Parece que temos nossa primeira visita! Não repare a bagunça, acabamos de nos mudar! O que posso te ajudar? - disse ele de um jeito amigável, como se uma estranha aparecer em sua porta fosse uma surpresa feliz.

- Oi, eu sei... Me chamo Melanie e moro aqui ao lado. Eu...
De repente me senti uma completa idiota por já receber meus novos vizinhos dessa forma, ainda mais quando ele estava sendo tão simpático. Acho que ele percebeu que me perdi em meio às palavras, porque antes que o clima ficasse estranho, ele tornou a falar.
- Desculpa, nem me apresentei! Sou Lucas, mas todo mundo me chama de Luke. Por causa do Star Wars, sabe?!
- Ah, e como! Meus gatos se chamam Darth e Anaquim! Bem vindo, Luke! Veio só você para nosso humilde bairro?
- Não, quem dera! Minha mãe e novo namorado dela vieram também, mas o cara tem pouco mais que minha idade e vive viajando a trabalho. A Dora sempre acompanha, então acaba que passo mais tempo sozinho mesmo, o que pra mim é ótimo. Posso ficar de boas ouvindo música, jogando, vendo série... E posso pedir pizza no café da manhã! É a vida que sempre quis! A propósito, seus gatos parecem incríveis e tenho certeza que a Léia vai adorar conhecê-los!
Ao falar isso, abriu um pouco mais a porta e apontou para uma gata preta e gordinha deitada no sofá. Percebi então que conversar com Lucas era fácil e agradável, tal como se nos conhecêssemos há anos. Ele tinha uma voz suave e alegre, e estava sorrindo o tempo todo. Um sorriso de menininho, que parecia preencher o rosto todo e ainda evidenciava suas covinhas. Me senti ainda pior por estar vindo reclamar, mas eu não tinha outra desculpa para dar como propósito à minha visita repentina.
- Você quer entrar?
- Não, eu já estou indo! Confesso que agora estou morrendo de vergonha de falar o que vim falar, mas... Aproveitando que você falou da música, eu...
Senti minha voz falhar e meu rosto enrubescer. Era uma droga ser assim tão transparente. À essa altura, queria abrir um buraco no chão e me enterrar, mas Luke parecia entender quando eu travava e sempre se apressava em continuar o papo antes que as coisas ficassem constrangedoras. Eu gostei um pouco mais dele por isso.
- Aaah, estava alto demais? Incomodou vocês? Sinto muito! Na última viagem da minha mãe para acompanhar o Eduardo, eu estava de férias e eles meio que me obrigaram a ir juntos. A casa que alugaram ficava no meio do nada e eu passava o tempo todo sozinho, daí esqueci que quando tem vizinhos, a gente precisa maneirar. Desculpa mesmo!
- Capaz, eu que peço desculpas. Tô me sentindo super mal de já dar boas vindas reclamando assim, mas meu irmãozinho fica muito perturbado com barulho excessivo e já estava quase enlouquecendo todos nós. Mas eu juro que não sou o tipo de vizinha horrível e rabugenta.
- Será que não? Nos Estados Unidos as pessoas costumam levar tortas ou doces para os novos integrantes do bairro, como um receptivo presente de boas vindas. Confesso que agora fiquei bem decepcionado.
Eu novamente senti meu rosto aquecer e imaginei que deveria estar mais vermelho que um pimentão, mas Luke parecia estar se divertindo com a situação.
- Hey, calma! Eu estava só brincando! Claro que se quiser trazer uma torta eu não vou me importar, especialmente se for de morango com chantilly, mas eu não sabia que você tinha um irmãozinho pequeno e de todo modo, não vou mais ligar o som tão alto, nem vou ficar achando que é a pior vizinha do mundo, prometo.
- Martin não é um bebê. Ele tem sete anos, mas é autista e barulhos muito altos o deixam extremamente nervoso.
- Puxa, sinto muito! Deve ser a maior barra lidar com isso.
- Não tanto. Digo, tem suas dificuldades, mas até aprender a respeito. Por muito tempo lidamos com todas as peculiaridades dele sem saber o que ele tinha, então vivíamos com a sensação de estarmos errando com ele. Depois do diagnóstico, nossa família passou a ler e assistir tudo sobre isso. Por muito tempo, autismo foi o assunto principal de todas nossas conversas e até hoje todas as decisões que tomamos são com base no que é melhor para Martin. Mas não vejo como um sacrifício, pois fazê-lo se sentir bem e feliz acaba sempre sendo o melhor para todos nós também.
- Nossa! Ele tem muita sorte de ter uma irmã assim... Posso imaginar o quanto de coisas já abriu mão por ele.
- É, não foram poucas. Mas compensa quando vejo aquele sorriso. Martin é um amor! Eu sim tenho sorte de ser sua irmã. Bom, preciso ir. Desculpa mais uma vez se não fui muito receptiva, prometo não reclamar de muita coisa além disso!
- Quero só ver! Não vale atirar pedras na minha janela também, ok?! Prazer te conhecer, Mel. Venha mais vezes!
Gostei da forma como ele pronunciou meu apelido, como se fôssemos íntimos. Me despedi e fui saindo, e quando estava abrindo o portão de casa, ouvi ele gritar.
- Hey! Rabugenta! Acho que tem um jeito de você compensar sua falta de receptividade! Estuda no Freire, né?
Ele tinha reparado no uniforme. Droga.
- Sim, porquê? Como isso pode me redimir?
- Também vou estudar lá, mas não conheço nada nem ninguém. Na real, nem sei direito como chegar lá, pois foi Dora quem fez minha matrícula! Poderíamos ir juntos e você me apresentar tudo lá?
- Claro que sim! Parece uma boa forma de mudar a péssima primeira impressão que deixei! Passa aqui as sete?
- É, é um bom começo! - Falou rindo. - Passo sim, combinado!
E quando eu já ia fechando a porta, ele gritou de novo.
- Mel!

- Oi?

- Foi uma ótima primeira impressão!
Piscou e fechou a porta, e eu logo entrei também, sem conseguir esconder o sorriso no rosto.

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⏰ Last updated: Nov 13, 2018 ⏰

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