Renata

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      Eu chego primeiro. É bom, assim eu posso sentar num lugar realmente seguro. Escolho a mesa mais próxima da entrada e não espero por muito tempo, talvez uns dez, quinze minutos. O local é arejado e uma grande janela permite que os clientes possam ver a rua e as pessoas passando, preocupadas com seus pequenos problemas.
       Existe um espelho logo a minha frente, ocupando toda a parede, mas não checo minha maquiagem ou o meu cabelo. Tinha confiança de que estava bem. Pelo menos era o que eu queria acreditar.
        Quando ele chega, o primeiro alívio foi saber que ele é o cara da foto. Esse é um fator decididamente importante. Sorrio da maneira mais simpática que conheço e o cumprimento. Sorriso Colgate, aperto de mão firme.
         - Oi! Você é o Bernardo, né?- eu digo, voltando a me sentar.
        -O próprio.-ele sorri, se sentando à minha frente.-Como vai, Renata?-percebo seu olhar sobre mim. Também parece aliviado de não ser vítima de catfishing.
        -Vou bem, e você?- eu pergunto olhando seus olhos azuis. Ele parece um galã de novela, chega a ser cômico.
        -Melhor agora. -ele diz. O olhar em seu rosto era divertido. Pelo menos ele está tentando. Dou um sorriso educado e ele parece estar satisfeito.
       - Então, Bernardo, o que você faz da vida?- eu pergunto, enquanto leio o cardápio do restaurante.
       -Atualmente, eu estou desempregado, por causa da crise e tudo mais. Sou formado em engenharia civil.-ele comenta, brincando com a taça de vidro ainda vazia. 
      -Que legal. É uma área legal, mesmo. Foi formado por qual universidade?-eu o olho, analisando seus trejeitos, a forma como falava, tudo. Por enquanto, parece que não vai dar tudo errado. Já é uma evolução comparado a outros encontros que tive em minha vida.
     -Na rede particular.-ele diz, me encarando.-E você?
     -Ah.-eu dou um sorriso um pouco sem jeito. Não gosto de falar da minha carreira para as pessoas porque a reação é quase sempre a mesma.-Eu sou doutora em Engenharia Florestal, pela UFRJ. Tô terminando o meu pós-doc esse ano. 
      -Uau! Quantos anos você tem?-ele me pergunta. Pelo menos ele nem tentou ser discreto. Vou levar isso como algo bom. 
      -Eu tenho vinte e sete, faço vinte e oito em outubro.-eu respondo, ainda segurando o cardápio.-Já decidiu o que vai querer?-eu pergunto, cortando o assunto.
       Ele faz que sim com a cabeça.
       Faço sinal para o garçom vir até a nossa mesa. Eu peço uma cesta de pães de queijo recheados e um matte com limão. O garçom anota o meu pedido e depois o de Bernardo, sorri pra gente e depois vai embora, levando os cardápios com ele. 
      Perdi a minha desculpa para não encarar aquele homem. Ele nem estava se saindo mal, mas eu nunca gostei muito de encarar as pessoas.
      Bernardo tem a brilhante ideia de continuar no mesmo assunto de antes. Que ótimo.
      -Engenharia Florestal é super interessante mesmo, eu pensei até em cursar, é super importante para o nosso planeta. É diferente de Engenharia Ambiental, sabia?-ele comenta, inocentemente.-Porque né, Engenharia Ambiental tem a ver com qualquer tipo de ambientes, enquanto Engenharia Florestal fala sobre construções em florestas. 
       Ah, não.  
      -Sim, eu sei.-dou uma risadinha sem graça.-Eu cursei a área. 
     -Sim, sim, eu sei. A UFRJ é uma ótima instituição. Tenho certeza que você aprendeu tudo muito bem.-ele diz, rindo.-Dizem que é uma faculdade bem difícil. Fico bem impressionado que você escolheu essa área, você não parece cabeçuda assim.
     Eu NÃO SUPORTO mansplaining. L
     Meu Deus, me ajuda a não matar um outro ser humano. Respira, Renata. Você já aguentou muitas situações iguais a essa, algumas até piores. Você vai comer seu pão de queijo e sair de cena sem voltar mais. Espera só mais um pouco.
     -Bem, eu sou bem inteligente, sim. E tenho muito orgulho disso.-eu comento, tentando não soar prepotente. Se bem que não me importei com o que ele pensou de mim desde o início e certamente não pretendo começar agora.
      Ele sorri. As nossas bebidas chegam e eu dou graças a Deus por poder ter uma desculpa para não falar. Agradeço ao garçom e bebo um pouco do meu matte, muito reconfortante nessa situação que está começando a me incomodar.
      -Sabe, Renata...-ele começa, olhando seu refrigerante, parecendo procurar as palavras certas. Ele já deveria ter feito isso, mas antes tarde do que nunca.-Eu curto você. Você é diferente das outras mulheres.
      Ah, tá. Ok. Pelo visto, pensar não ajuda todos os seres humanos. Uma avalanche de respostas rudes passou pela minha mente. Mas eu me recuso a soltá-las. Ser calma sempre foi o meu ponto mais forte. Eu me olho no espelho atrás dele, pra checar se a minha cara transparece o meu esforço para permanecer em cima do salto.
     Eu sorrio.
      -Eu não sou diferente de ninguém.-eu digo, bebendo mais um gole do matte, ainda que desejando algo mais forte. 
      -E ainda por cima é humilde, que sorte que eu dei.-ele sorri de orelha a orelha. Ele acha que está abalando, socorro.
      Respiro fundo. 
      -Acho que você deu muito azar, na real.-eu digo, já sem sorrir.
      O garçom de antes chega com a comida (finalmente), eu me atento à comida e ficamos num silêncio consagrado de pessoas apenas compartilhando um momento biológico da espécie humana. Conhecer pessoas pela internet nunca foi meu forte, mas ele foi meio que por acaso, em um grupo sobre filmes franceses. Nós começamos a conversar nos comentários de uma públicação qualquer e eu gostei do papo. 
       Em situações normais, eu nunca aceitaria me encontrar com alguém que não conheço, mas eu realmente estava interessada e o dono do restaurante é meu amigo próximo. Já conhecia bem as pessoas que trabalhavam lá, então caso fossem algum tipo de golpe, eu não estaria sozinha. Nunca falei para ele que sou feminista. Os caras costumam a pensar que não sou por causa da minha aparência, pela forma como me visto e por onde eu moro. 
       Sempre foi isso que eu abominei. Gente que julgava o outro pelo jeito da pessoa. Eu sempre tive uma posição privilegiada na sociedade, mesmo quando estava acima do peso, não vou negar, mas ter um parente abusivo como tive pode acontecer com qualquer ser humano, independente da cor, do status ou de qualquer outra coisa. Foi por isso que me juntei ao feminismo e nunca deixaria de lutar por mim e por minhas irmãs, para proteger as mulheres desses comportamentos e de julgamentos. 
      Ninguém deve passar pelo que eu passei e nenhuma mulher é diferente uma da outra, esse é um pensamento que instiga a competição feminina, um dos grandes inimigos da causa feminista. Isso quase saiu pela garganta, mas eu precisava manter a elegância. Decido dar a ele mais uma chance. 
      Ele para de comer para continuar a falar. Eu me concentro no meu pão de queijo. 
      -Mas é serio.-ele começa, antes de terminar de engolir a torta que havia pedido. -Existe tanta mulher vulgar por aí, que só quer saber de coisa indecente. Mas desde a primeira vez que eu vi o que você falou lá no grupo eu percebi que você era diferente, mais inteligente e culta, não do tipo que fica rebolando a bunda pra qualquer um, que muitas vezes nem merece.
       -Você acha isso, é?- eu pergunto, tentando soar o mais doce possível. Que trabalho difícil aquilo havia se tornado.
       -Além de bonita é inteligente. Sabe como é difícil encontrar essa soma?-ele diz, em tom jocoso.
       Essa havia sido a gota d'água. Me levanto, tentando não fazê-lo rápido demais e aviso a ele que vou no banheiro, levando a minha bolsa comigo. Ao invés de ir aonde eu  havia dito, eu entro na porta dos funcionários e vejo o meu amigo de escola, Joaquim, ali, sentado em sua escrivaninha encostada na parede. Ele me olha sem entender bem. Eu paro na frente da mesa dele e suspiro.
       -O colega ali vai pagar a conta, com uma gorjeta bem gorda, ele adorou o serviço daqui.-eu digo, guardando o celular na bolsa.
      -Você está bem?-ele pergunta, se aproximando mais da mesa. Joaquim me conhecia muito bem. Ele coloca seus óculos na mesa.
      -Não se preocupe comigo. Posso sair aqui por trás?-pergunto, apontando para a saída dos fundos que ficava atrás dele.
      -Claro, Rê. A casa é sua.-ele diz, se levantando e abrindo a porta pra mim.-Volte sempre!
      -Pode deixar!-eu sorrio para ele, acenando em despedida.
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      Chego em casa, tiro os sapatos desconfortáveis, largo a bolsa no sofá e coloco a minha câmera no tripé que tinha desde o casamento do meu irmão e troco a minha roupa pelas mais curtas que tinha. Coloco "Vai Malandra" no celular no volume mais alto possível e começo a gravar.
      Sorrio para a câmera.
      -Oi Bernardo! Surpresa! Vou rebolar a minha bunda pra um qualquer que nem merece vê-la!- eu digo, antes de me virar e rebolar pra câmera, ao som da música. Depois de trinta segundos da música, eu a desligo e olho para  a câmera de novo.-No caso, o qualquer é você, seu machista do caralho! Antes de encher o saco de mulher, vai arranjar emprego pra poder pagar um encontro melhor do que ir comer pão de queijo, tá meu amor? Te cuida.
       Eu desligo a câmera e passo o vídeo para o meu celular. Posto o vídeo em todas as minhas redes sociais, marcando a conta dele e o mando por privado no WhatsApp.
       Quando ele visualiza e vejo que ele está digitando, bloqueio o número e todos os usuários daquele ser humano desprezível.
       Sorrio pra mim mesma. Foi uma sensação definitivamente satisfatória. Eu me levanto, coloco chinelos e vou pro bar em frente a minha casa, tomar um drink da vitória antes de voltar e cair na cama.
        Só tem uma mulher naquela birosca, sentada no balcão, com roupas chiques e descalça. Ela é negra, tem um black power muito bem cuidado e já parece um pouco alterada, apesar de serem umas sete e meia.
        Eu me sento ao lado dela e peço uma caipirinha. Ela me olha de relance e eu ergo o copo pra ela.
         -Viva o matriarcado!
         Ela sorri e bate seu copo no meu.
         -Oi.-ela diz.

    

    

A Mulher PerfeitaOnde histórias criam vida. Descubra agora