XIX - A VELARIA DE VULKERMÓNT

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O clangor de guerra surgiu da massa de expectadores e uma por uma as armas foram empunhadas. Alguns desembainhavam-nas com perícia e velocidade as largas espadas de gume afiado, outras, de duas mãos e pesadas como bigornas, eram erguidas com lentidão por músculos rijos. Maças, marretas, machados e arcos — tanto os longos e curvos, ornados com graciosas volutas de ouro e prata, como as variantes mais simplórias, de madeira escura e flexível, mas igualmente letais —: via-se de tudo no proclamado séquito de Arkik. Vinst puxou o sabre com um movimento preciso e o ergueu mais alto que pôde e viu Marëll fazer o mesmo com o arco preso às costas; para sua surpresa, o jovem Teriá também vasculhou o cinturão com a mão e de lá tirou uma adaga curva, que ofereceu ao deus de guerras. Mesmo as montarias agiam como se entendessem o conteúdo irascível das palavras, pois bufavam e inquietavam-se impacientemente sob seus cavaleiros, as patas faiscando contra a pedra do calçamento.

— Rijkjet'r én! Rijkjet'r én! Rijkjet'r én! — gritou cada homem e mulher ao final, sentindo toda ira de Arkik a irradiar dos punhos erguidos, as veias saltando dos rostos e os olhos injetados por sangue.

No fim da breve iniciação, o sacerdote convidou-os a seguir por fim à Velaria, os velariços seguindo-o portão a dentro. A longa capa do velário, agitando-se como sombras irrequietas, desapareceu assim que o homem adentrou a escuridão do templo. O aço voltou a ressoar, mas agora pelo embainhar das armas de guerra. Jovens escudeiros e pajens apressaram-se a ajudar os sores a desmontar, e caminharam em grande procissão encabeçada por Hájenor. O príncipe envergava a armadura ancestral, resplandecente como as eram naquela época, quando os homens vestiam suas honras como os pássaros mais suntuosos ostentavam suas penugens.

Teriá deixou-se ficar um pouco, esticando o pescoço sobre a multidão, e por fim apontou-lhes algo ao longe: 

— Lá, veem? Lá está Raërn: vejam como olha por nós! Bem ali, capitão.

— O grande Raërn! — exclamou Marëll, a palma da mão sobre os olhos estreitos. 

Vinst voltou-se para a torre e demorou um tanto para distinguir algo na distância. Um globo azul brilhante, ora circundando a cúpula translúcida, ora fixado em sua direção: um grande olho, é o que parecia, como na noite do Imvolk.

— A Visão! — exclamou o capitão.

— Raërn ficou furioso quando soube do ataque das serpes — contou o acólito enquanto avançavam para a entrada da Velaria, sem desgrudar os olhos da torre. — Chamou-me naquela mesma noite, assim que terminou no conselho e contei-lhe o que vi e presenciei daquele ataque; fomos noite adentro e, se o magíer referiu-se a mim como um grande e curioso perguntador, ah, deviam vê-lo! Falei do senhor, capitão, e da senhora Eloés, e de tudo que fez a vossa companhia pela cidade. Sua fúria, por fim, revelou-se como uma grande culpa que ainda enche-lhe o peito. Não poderá expiá-la tão cedo, é como percebo, e lá está ele, guardando a cidade.

A antecâmara da velaria era tão fria quanto úmida e o teto se perdia no ambiente cavernoso. As portas voltaram a ranger com sofrimento e fecharam-se atrás deles — quem as havia fechado, Vinst ignorava, e continuaria a fazê-lo, pois sabia bem que nos ritos velários sulistas não se devia olhar para trás durante as procissões. Nunca! O tilintar das armas e armaduras ressoava ao chocarem-se umas contra as outras; o som ricocheteava pelas paredes grossas e voltava aos ouvidos como sussurros distorcidos e estranhos. Continuaram a peregrinação, e ao poucos os olhos se adaptavam à luz diagonal da grande rosácea, iluminando e colorindo a poeira suspensa numa miríade de cores fantásticas. Os elmos e pontas de lança refletiam uma luz brilhante e difusa, tão colorida quanto mil arco-íris. Por fim chegaram num círculo escuro cavado no chão, diante do qual o príncipe ajoelhou-se, a placa do joelho ressoando contra o chão, e lá permaneceu por um tempo, emitindo preces silenciosas.

Vinst e seus companheiros, fechando a procissão, chocaram-se contra os que tomavam lugar a frente. De algum lugar atrás deles — longe ou perto, era impossível precisar ali — ouviram passos rastejantes, ao que se seguiu um longo e grotesco arfar.

— Não olhe para trás, capitão — sussurrou o acólito, bem quando o movimento tornou-se inevitável ao capitão. 

A aura mística e antiga tornou-se um martírio para o capitão, e decerto não era o único. Homens e mulheres mexiam-se, nervosos, e ameaçavam girar o torso, mas nenhum deles ousou fazê-lo: os riscos eram grandes e o temor, ainda maior. 

— Sinto-me— — um peso. Um peso antigo e terrível — sussurrou de volta o capitão. — O que é— —

— Silêncio agora, capitão — disse Marëll ao seu ouvido. — Não me agrada tanto quanto ao senhor, e o bafo que sinto na nuca congela-me a espinha: quanto menos falarmos, melhor.

O ar no recinto, estagnado e úmido, evocava lembranças há muito esquecidas. A mente do capitão enevoou-se com um turbilhão de sentimentos e sensações que pareciam brotar do chão, perpassavam a espinha e deixavam um rastro gélido e agourento pelas costas, como lhe dissera Marëll. Mal começou a sentir-se terrivelmente agoniado e o príncipe pôs-se de pé. A procissão prosseguiu a passos ligeiros, e Vinst teve a certeza de que não era o único a queixar-se.

O grande círculo revelou-se como uma grande bacia de pedra que ocupava quase toda a base da daquela torre; era ampla e achatada, como um prato, e nela jaziam as cinzas dos antigos príncipes e nobres em Vulkermónt, tingidas pelos raios dançantes do vitral. Sobre a bacia pendulava um globo de ouro preso à uma linha. O vaivém da orbe riscava as cinzas e formava estranhos padrões em seu caminho, ora elípticos, ora parabólicos, ininteligíveis quando vistos tão de perto. Nomes escritos em letras áureas ao redor da base brilhavam contra a luz: meras lembranças diante do pó indiscernível que os homens vieram a se tornar.

Avançaram até a escadaria e começaram a galgar os degraus altos e estreitos, dando voltas atrás de voltas sem, no entanto, avançar em altura. Uma fina linha dourada do pêndulo descia em meio ao fosso vazio. Vinst seguiu a linha e teve que estreitar os olhos para divisar uma claraboia distante. Seria mesmo aquela torre tão alta?, perguntava-se o capitão, degrau após degrau, impressionado com a altura que se punha sobre eles. As escadas continuavam em voltas sobre voltas e perdiam-se de vista em trechos escuros apenas para reaparecerem novamente, iluminadas pela meia-luz âmbar do pôr-do-sol — como a luz chegava ali, Vinst ignorava! A marcha continuou por um tempo impossível de precisar; os homens, arfantes, mantinham-se mais próximos parede, testando cada novo degrau em que pisavam, pois não raro sentiam pedras soltas sobre os pés e ouviam o rolar de cascalhos escada abaixo.

Curioso e impaciente como era, Vinst separou-se dos companheiros na reta-guarda por um instante e dirigiu-se a passos cuidadosos à margem da escadaria a fim de precisar o seu avanço — se é que haviam avançado! Sentia o próprio corpo a puxá-lo de volta para a parede da torre num ato de desespero, mas continuou até o que parecia ser a borda, os degraus transpassados por uma torrente violenta de rachaduras, e de lá lançou um olhar até o chão longínquo e mal iluminado. Por alguns instantes pôde ver, para seu espanto, o símbolo descrito pelo pêndulo e, antes que pudesse refletir sobre o que via, sentiu dedos frios na nuca, entre a aba do chapéu e a gola alta da casaca, a guiá-lo de volta para o grupo — não que fizesse qualquer força, mas o mero toque era de tal forma incisivo que bastou para que o capitão desse um pulo à direita, voltando para o canto da parede e lá permanecendo até que, após certo tempo, a grande claraboia cresceu sobre eles, iluminando-os a todos com a luz esverdeada.

— Grynpdokrae! — Marëll falou para si. — A Nébula Verde!

Um grande pórtico os esperava no topo da torre, o qual atravessaram, sedentos por luz, até um espaço longitudinal e amplo iluminado por janelas ogivais, que, apesar de grandes e pouco esparsadas, não davam conta de clarear suficientemente a nave, relegando a procissão a uma meia-luz grave: eis o Templo de Guerra, como o chamara o velário!

VIRMÍRIA I {REVISÃO}Kde žijí příběhy. Začni objevovat