XXV - A NOITE SEM LUAS

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— Fujo dos olhos dos homens apenas para ser descoberto por um par de narinas — maldito sejam o fumo e o cachimbo! — praguejou a voz, quando viu o sarhájo aparecer na borda da clareira.

Marëll, ainda confuso, limitou-se a forçar os olhos em direção à silhueta: empoleirado na pedra estava o homem cuja voz ouvia. Divisou a barba e o cabelo grisalho, este último encimado pelo característico chapéu cônico. O longo cajado despontava do conjunto, sustentando em sua extremidade o grande olho flutuante. Mal tinha Marëll identificado a Visão mágica do magíer, esta transformou-se em luz, como um pequena estrela quente que flutuava sobre seu mestre e jogava luz no invasor — uma luz tão forte que obrigou o recém-chegado a proteger-se.

— Senhor magíer, é o senhor aí em cima, afinal! — disse por fim, tampando os olhos com as mãos, pois foi com dor que recebeu aquele golpe luminífero, acostumado que estava com a noite escura. — Acabo meu dever no treinamento dos arqueiros, encontro-o por acaso — disse Marëll, em tom de desculpas. — Por que não volta comigo aos acampamentos? Veja a tempestade que se aproxima! — exclamou.

— Voltar?! — indagou o magíer. — Mas não faz uma hora que escapei de lá — por que quereria eu voltar? Você fala de tempestade — disse, desdenhando do aviso do outro —: nunca lhe disseram sobre os que os ventos fazem às árvores velhas? Já não viu mais de um homem morto com um galho sobre a cabeça? Pois diga-me se estou ou não no lugar mais seguro durante uma tempestade!

E as árvores, como que para confirmar as sábias palavras do magíer, fizeram-se estalar sob a ventania gélida, e o sarhájo, muito precavido, pulou às cegas clareira adentro para escapar do alcance dos galhos, ainda de olhos tampados — era de fato uma dança patética que o magíer fazia-o a dançar —, pois era sabido como velhos eram mestres na ventumancia.

— Desculpe dizê-lo, senhor magíer — começou ele, meio ganindo, meio gritando —, e não sei se é a sua intenção — espero que não, por Arkik! — acrescentou às pressas —, mas está prestes a cegar-me os olhos! — disse com sinceridade. — Meus olhos queimam sob sua luz mesmo tendo-os fechados e protegidos — juro que se esta magia atravessa pálpebras e mãos!

A luz então cessou de iluminar-lhe o rosto e caiu sobre o caminho que levava ao magíer, iluminando o verde da relva revolta e os pedregulhos que se assomavam aqui e ali pelo trajeto. Antes que Raërn pudesse dizer mais qualquer palavra, Marëll entendeu a mensagem: era um convite para juntar-se a ele; com os olhos borrados por manchas brilhantes e disformes, fez o melhor para esquivar-se dos obstáculos e pôr-se ao lado do magíer, no alto da pedra, e o mundo tornou-se escuro de novo.

— O que faz aqui, senhor Raërn, tão longe de todos? — perguntou Marëll, enquanto esfregava os olhos com força, abrindo-os novamente apenas para fechá-los e tornar a esfregar.

— É a primeira noite sem lua desde muitos dias, não vê?! — disse o velho alto, pois os ventos uivavam. — Quando se ama o mundo, e, acima de tudo, os céus, que é de onde viemos, como bem sabe, nunca se perde tal evento!

— Amo o mundo, senhor: não lhes contei sobre minhas aventuras por alhures e de como encantam-me as cidades e os povos? Mas agora que volto a enxergar como antes — e não leve o que digo como uma afronta, senhor magíer, é o que peço! — acrescentou de pressa —, respondo-o: o que vejo é a escuridão, sim, se é sobre isso que me indaga! Mas me pergunto: o que ver numa noite escura como breu, tão negra quanto um umbral?

— Ora, meu caro sarhájo, não há resposta mais simples: vê-se o que brilha!

E antes que Marëll pudesse perguntar mais, o grande olho mágico voltou a surgir da ponta do cajado e, virando-se contra o céu — a parte norte ainda encontrava-se livre de nuvens —, transformou-se num círculo em cujas bordas a luz das estrelas e a escuridão do mundo mostravam-se deformadas e alongadas; o centro da figura, porém, encontrava-se límpido como nem mesmo o olho humano poderia vê-lo. 

VIRMÍRIA I {REVISÃO}Where stories live. Discover now