Interligados

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O cheiro da fumaça doce e enjoativa ainda impregnava meu vestido quando paramos de correr, a neve e o vento uivando no meu rosto. A noite já caíra, cobrindo-nos com seu manto de escuridão. Conseguimos despistá-los fazia centenas de quilômetros, entretanto tanto eu quanto David concordamos em não descansar até termos certeza de que era seguro. Eu certamente estaria chorando, se pudesse. Como meu corpo era incapaz de produzir lágrimas, contentei-me em me encolher debaixo de um pinheiro no meio da floresta e soluçar conseguintemente. Patético, mas eu não me incomodava em prestar este papel lamentável na frente de Dave. Já havíamos visto coisas demais juntos para se importar com esse tipo de coisa.

A dor era insuportável, atordoante em seus espasmos. Queimava no gelo de meu corpo. Não devia doer tanto. Vampiros são criaturas semimortas; o coração não passa de uma pedra silenciosa escondida em algum lugar do peito. E, no entanto, lá estava eu, sentindo como se tivessem arrancado o meu com um só golpe. Abracei-me com mais força, buscando desesperadamente tapar o buraco que restou.

Joseph...se fora. Meu pai se fora. Aquele que me salvou quando eu mesma não queria ser salva. E eu, em minha estúpida inutilidade, não consegui devolver o favor quando ele mais precisou... Aqueles desgraçados o mutilaram brutalmente diante de nós, e por mais que tivéssemos lutado para ajuda-lo, seus restos agora não passavam cinzas em uma fogueira perto de casa. Retraí-me ao sentir o cheiro da fuligem no tecido.

Se eu estava mortificada, David estava além da fúria. Estava possesso, bestial. Andava de um lado para o outro, feito um furacão derrubando árvores a socos; o estrondo dos golpes fazia eco floresta adentro. Fechei os olhos, me esforçando para despertar daquele pesadelo hediondo. Mas, subitamente, o barulho se cessou – até os pássaros pareciam ter se calado. Arrepiei-me inteira. Por alguma razão, senti-me encurralada.

— Anna, olhe para mim – exigiu Dave.

Levantei os olhos, confusa, e vi que ele me encarava. Mas não como de costume. O olhar habitual de David era calmo e derretido, acalentador como o fogo da lareira em uma tempestade de inverno ou como o perfume dos carvalhos perto do lago. O olhar que ele me lançava agora gélido e duro, o dourado suave de seus olhos convertidos em ouro maciço. Engoli em seco e recuei por reflexo, as costas roçando no musgo úmido da árvore.

E então as mãos dele estavam em torno do meu pescoço, erguendo-me acima de sua cabeça. Meus pés se agitaram no ar, procurando solo firme.

— Sua culpa, Anna! Sua culpa!

Houve um estalo audível e quando tentei gritar, só entreouvi um ganido seco. Meus dedos agarraram-se aos dele, sentindo o pó escapando de seus punhos, sendo levado pelo vento. Minha pele de mármore, lisa e polida, estava trincando ante aquele aperto de gorila.

— Sua culpa, Anna... – E a voz não era mais a de David.

Virei uma boneca de trapos, de braços molengas e inúteis, ao perceber que era Joseph, e não David, me estrangulando. Ele não voltou a me acusar, mas os olhos disseram tudo. Então me despedacei em mil fragmentos e despenquei para o vazio.


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Estrela da TardeWhere stories live. Discover now