Não Só Ratos

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Ângelo foi o último Nume que conheci, e com ele visitei muitas casas e conheci muitas famílias. A maioria ignorantes, chamando Númen para resolver problemas que qualquer exterminador de pragas idiota resolveria.

Um Nume, veja bem, lida também com seres vivos – e por "vivos" eu quero dizer que possuem corpo e sangue, carne para cortar e, se o Nume for esperto, queimar – mas não ratos e piolhos. Mais para bichos-papão, sacis, algumas bruxas barulhentas, enfim, esse tipo de coisa, além das energias não corpóreas extra-terrenas, que alguns chamam sobrenaturais.

O único caso bem-sucedido (e com isso quero dizer: único caso em que havia necessidade da presença de um Nume) no qual acompanhei Ângelo foi, a princípio, mais um caso de gente ignorante. Uma família do interior dizia ouvir muitos ruídos no forro da casa durante a noite. A princípio o fazendeiro desconfiou de ratos, e arrumou alguns gatos para morar dentro da casa. Acontece que o caçula era alérgico, e a esposa do fazendeiro colocou os bichanos para correr. O homem então subiu ao forro mas nada encontrou. Para não me alongar: concluímos que eram ratos, que só vinham à casa durante a noite, desciam pelo forro para procurar restos de comida pela cozinha. Durante o dia, talvez por causa do calor, os malditos iam se refugiar no galpão e insetos comiam as suas fezes, de modo que o fazendeiro não viu nenhum sinal deles quando subiu no teto ao fim da tarde. Mas ao procurarmos melhor, Ângelo e eu achamos umas poucas fezes no forro da casa e muitas no galpão.

Já na hora de sairmos, D. Amélia, a fazendeira muito agradecida e um pouco envergonhada fez questão que os quatro filhos viessem nos agradecer e se despedir.

"Camilo, cadê sua irmã Cláudia?" – ralhou a mãe. Os outros três já se encontravam na cozinha, onde terminávamos um café.

"Ora, na saleta, como sempre."

"Sabe" D. Amélia me explicou, meio se desculpando, "ela anda bem reclusa desde que... bom, ela teve uns problemas, sabe? Não gosta muito de sair da salinha em baixo da escada. Antes de sair, vamos ali, tenho certeza de que ela também está muito agradecida por terem descoberto da onde vinham os barulhos..."

Para falar a verdade, o excesso de simpatia e gratidão da velha me irritava um pouco, mas acenei concordando, para ser educado – algo que Ângelo fazia questão de me acusar de não ser.

Pois bem, terminamos de comer e nos dirigimos à saída – e eu já havia esquecido da tal da Cláudia-senhorita-reclusa, quando a senhora nos fez desviar do caminho para a porta de saída em direção a uma outra porta sob a escada. D. Amélia bateu.

"Mamãe? Só um instante."

Uma mulher alta e pálida, magra quase à desnutrição, os cabelos meio emaranhados abriu a porta. Vestia uma camisola branca, porém de tecido grosso que nada deixava à mostra – não que houvesse algo para ver.

Mas pior que a visão da mulher bizarra, foi a energia que saiu com ela da sala. Devia emanar de um ser poderoso, pensei, pois se escondeu do mestre Ângelo atrás apenas daquela porta. Eu dei um passo para trás, instintivamente, quase com medo. Ângelo me cutucou com cotovelo e eu me recompus. Ele então se dirigiu à moça: "Boa tarde. Qual o nome da mocinha?".

Sem responder, ela recuou de repente, como se fora empurrada para trás – ou puxada. Meu mestre se virou para os pais:

"Talvez haja alguns ratos aqui também, podemos dar uma olhada?" Isso não fazia sentido algum, já que não caçávamos ratos, mas serviu para os ignorantes donos da fazenda.

Dentro da sala a presença era mais forte, deixava o ar pesado. Uma janela grande e alta, como das casas de fazenda, deixava entrar a luz do dia, mas ali dentro ela parecia mais fraca do que no restante da casa, meio pálida, como a mulher. Havia na saleta um sofá e uma cama de solteiro e sobre ambos havia cobertores remexidos. A moça se sentou no sofá, e Ângelo na cama em frente. Eu não tive coragem de entrar mais do que alguns passos. A sala era fria. A mãe esperava atenta do lado de fora, junto à porta.

Não Só Ratos & Outros ContosWhere stories live. Discover now